Papo de Terreiro: Akodidé - Poder Feminino e Relações de Gênero no contexto dos Afoxés de Pernambuco

Akodidé - Poder Feminino e Relações de Gênero no contexto dos Afoxés de Pernambuco

 

Akodidé1
Poder Feminino e Relações de Gênero no contexto dos Afoxés de Pernambuco

A presente pesquisa propõe estudar o Afoxé pernambucano como uma manifestação da cultura afro-brasileira, enfocando as dimensões do poder feminino e as relações de gênero atreladas
à hierarquia religiosa que fundamentam a existência desses grupos, na busca de compreender o
papel da mulher nos processos sócio-políticos-culturais desenvolvidos por meio desta manifestação.
Sobre o Afoxé pernambucano seguem algumas considerações:

Em linhas gerais, o Afoxé, também denominado popularmente Candomblé de Rua, é uma
manifestação cultural fundamentada nas doutrinas africanas de Culto aos Orixás, que na diáspora
para o Brasil denominou-se Candomblé. Por isso, cada grupo adota um Orixá como guia e é zelado
por uma liderança religiosa, Babalorixá2 (Pai de Santo) ou Ialorixá3 (Mãe de Santo). É esta pessoa
quem orienta o grupo em todos os aspectos, e seus participantes, mesmo que não adeptos do
 
Candomblé, devem respeitar a hierarquia, os fundamentos religiosos e ter disciplina, obedecendo
aos critérios de funcionamento do Terreiro ao qual pertence o grupo.
 
No Recife, o afoxé é notado a partir da primeira metade do século XX. O historiador Lepê
Correia verbaliza que entre os anos de 1940/50 existiam grupos ligados aos Maracatus Nação.4
Katarina Real (1990) também faz a mesma referência e Raul Lody (1976), observando os
instrumentos do Maracatu Leão Coroado guardados no Terreiro de Pai Adão, percebe entre estes o
conhecido ilu, instrumento de couro típico dos afoxés baianos.
 
Durante o Estado Novo (1937 – 1945) as organizações negras, bem como outras
organizações sociais, vivenciaram toda sorte de repressão,5 mas no decorrer da década de 70
começaram a se reorganizar e junto com outros segmentos, lutar pela reabertura política. Em 1978,
por exemplo, funda-se o MNU - Movimento Negro Unificado, em São Paulo e no Recife, um ano
depois o Movimento Negro do Recife.6 Integrantes deste Movimento e pessoas comprometidas com
o fim das idéias racistas, apoiadas pelo Babalorixá Raminho de Oxossi, fundam o Afoxé Ilê de
África para o carnaval de 1981. Mesmo copiando o modelo estético do Afoxé Filhos de Gandhy, de
Salvador,7 a participação de mulheres foi uma particularidade não vista até então e o grupo
contribuíra para o início de um novo ordenamento no que concerne à possibilidade de participação
das mulheres na manifestação, como membro integrante e como agente político de um movimento mais amplo, ao menos teoricamente, pois, ao que parece, o afoxé torna-se um dos mecanismos da
reorganização política dos segmentos negros do Recife e, em particular, das mulheres negras. Entre
as músicas cantadas, a que segue contextualizava o momento:
 
Gingando e tocando atabaque no asfalto lá vem
É o Ilê de África, tem, tem, tem,
Tem muito preto adoidado e muita preta também
Venha e cante comigo, mas só cante em nagô
E não tenha preconceito dê valor a essa cor
Lêlêlê, lêlêlê, lêlêlêô, dê valor a essa cor. (grifo meu)
 
No fim dos anos 80, já se contavam mais quatro grupos: o Axé Nagô (criado por
dissidentes do Ilê de África com um curto tempo de atividades), o Povo de Odé (1982), o Ilê de
Egbá (1985) e o Alafin Oyó (1986), os três últimos em atividade até hoje.
 
Ao observar a configuração desses grupos, constato que durante a década de 80, as
mulheres desaparecem dos quadros de liderança e passam à posição de colaboradoras, organizando
o trabalho burocrático, servindo água durante o cortejo, ou seja, as posições de homens e mulheres
são claramente demarcadas como exemplifica Lady Albernaz (2006), entre os marcadores de
gênero, raça, geração e classe8, apontados por esta autora. Em fins deste período, o registro
jurídico era critério para a fundação de um afoxé e a eleição para a diretoria do Afoxé Alafin Oyó,
em 1989, é que recuperou a participação de mulheres, desta vez, numa conformação genuinamente
feminina. Militantes (em sua maioria) do MNU apropriadas das discussões do I Encontro Nacional
de Mulheres Negras9, como dirigentes, conduziram o Alafin Oyó inserindo novas práticas,
contextualizadas em um discurso político inovador, contemplando os valores culturais e, ao mesmo
tempo, adaptando-os a uma nova realidade. Recorda Márcia Diniz10 que o Alafin saiu do palco e foi
para outras frentes, quando foi inserido em várias instâncias da organização social.
 
A década de 90 manteve a criação de novos grupos. De 2001 a 2003 a Prefeitura do Recife
realiza pesquisa sobre a história dos afoxés nesta cidade e quando saem os primeiros resultados11 é
notável a estabilidade dos grupos existentes, bem como o surgimento de vários outros. Acredito que
o poder público tenha influenciado diretamente neste processo, fato ainda passível de investigação.
Portanto, esta década do século XX vem sendo marcada pela afirmação e surgimento de
muitos Afoxés. O MNU possui 24 grupos catalogados, mas estima-se a existência de quase trinta
entre as cidades do Recife e de Olinda.
 
Em 2005, funda-se a UAPE – União dos Afoxés de Pernambuco, idealizada por sete
grupos de Afoxé e hoje, com dez grupos filiados, é o organismo de representação jurídica dos
afoxés pernambucanos dirigido por um Conselho formado por quatro homens e três mulheres
representantes de cada um dos sete grupos que a fundou.
 
Meu interesse por esta temática surgiu em fins da década de 80, quando me tornei sócia do
Afoxé Alafin Oyó e pouco tempo depois vivenciei o processo de eleição o os conflitos enfrentados por uma diretoria que, pela primeira vez, foi composta exclusivamente por mulheres. Acrescento a
isso o fato de participar como desfilante do Afoxé Omi Sabá, criado em 2002, quando pude
observar ser o único a ter uma mulher como Mestra de Alabê e fazer uso do ilu, instrumento de
couro raramente percutido por mulheres; Também como ativista e desfilante do Afoxé Oyá Alaxé,
fundado em 2003, despertei para o fato de que junto com o Afoxé Obá Ayrá, fundado em 1990, são
os únicos a terem mulheres como zeladoras religiosas e responsáveis pelo controle social dos
grupos.
 
Segundo José Beniste (2000) e Helena Theodoro (1996), as religiões de matriz africana
tratam a mulher como a guardiã dos mistérios naturais que concebem a vida, consagrada por Olorun
a grande mãe de todos (Ìyá won). Em publicação de Cristiane Cury e Sueli Carneiro (1990), consta
que no universo nagô, é da interação dinâmica e conflituosa entre os opostos que tudo é gerado,
provocando o equilíbrio entre a terra (àiyé) e o além (òrun), representados pela mulher e pelo
homem. Ele, o princípio genitor masculino, ligado ao órun, e ela a terra, grande ventre reprodutor,
princípio genitor feminino. Tais preceitos estão ligados à noção de família e os conflitos se
expressam na luta pela supremacia entre os sexos, disputando o controle do mundo.
 
A interpretação desses preceitos muitas vezes é utilizada no Ocidente como justificativa
religiosa para uma hierarquização entre homens sobre as mulheres, que fica evidente, no caso dos
afoxés, quando observamos mais amiúde formas de participação diferenciada e desigual destes na
manifestação. Ao que me parece, os conflitos naturais dessa dinâmica são equivocadamente
idealizados e reproduzidos no cotidiano dos afoxés que, quando não exclui, limita a participação das
mulheres, como observei durante a década de 80, talvez pelo fato de ser um momento de difusão e
confronto das idéias feministas.12
 
Segundo Maria de Lourdes Siqueira (1995) e Pierre Verger (2002), entre os séculos XVI
e XIX, mesmo sob a dominação do sistema colonial-escravista vivido no Brasil, as mulheres
asseguravam a ordem da casa grande, chefiaram quilombos, participaram de levantes abolicionistas,
recriaram e transplantaram os primeiros Terreiros de Candomblé onde elas próprias realizavam os
seus rituais. Ruth Landes (2002) descreve minuciosamente o poder feminino na Bahia: “eram as
mulheres do candomblé que canalizavam a vida do povo”. O legado dessa história de luta,
assumindo postos de liderança é definido por Patrícia Collins (1991) como um desfio das idéias
hegemônicas da elite masculina branca, expressadas na consciência sobre a intersecção de raça e
classe na estruturação de gênero. Concordando com esta afirmativa, entendo que este legado
credencia as Ialorixás realizarem, por exemplo, os procedimentos religiosos pertinentes a um afoxé,
fundar ou exercer o controle social de um grupo. Portanto, por que não é comum elas assumirem
esses postos? Talvez o preceitos religiosos atrelados à cultura ocidental sejam os determinantes
desses limites. Em sua pesquisa, Lody (1976) relata um mito africano no reino de Oloxun, na terra de gexá, havia uma comunidade exclusivamente de mulheres.
 
Nas grandes festas consagradas à rainha de Gexá, que é Oxum, cortejos percorriam as
dependências dos palácios, praças e principais ruas do reino. As mulheres tocavam
pequenos ilus, presos no pescoço com alças de fibra, percutindo os couros com ambas as
mãos. Isso constitui-se em verdadeiro preceito religioso, que ainda fundamenta muitos
ritos ligados ao orixá Oxum. Esses ilus sobreviveram no Brasil especialmente nos cortejos
dos afoxés, que segundo muitos participantes possuem sua origem nos séqüitos festivos de
Oxum (grifo meu).
 
Observei recentemente no Ilê Obá Aganju Okoloyá, em meio a uma obrigação religiosa, a
Iakekerê13 interromper uma cerimônia e percutir um ilu ensinando ao ogan alabê a maneira correta
das batidas para um determinado orixá. Também ouvi no mesmo lugar, em conversa informal, um
dos alabê dizer ter sido essa mesma mulher quem os ensinou a percutir os instrumentos. Questiono
então: se no continente africano era comum mulheres percutir um Ilu com as mãos, por que no
Brasil, num universo de tantos afoxés originários daquela cultura, há apenas dois casos
excepcionais de mulheres manuseando esse instrumento? Avalio ser um paradoxo, assim como
descontextualizado o depoimento de um integrante de afoxé, justificar com base na tradição
africana que só quem toca os instrumentos são pessoas do sexo masculino, porque isso já vem do
antepassado... os instrumentos foram feitos para homem, não para mulher.14
 
Lody (1976) aponta mais dois exemplos da ocupação de cargos masculinos nos postos de
maior responsabilidade nos afoxés, são o transporte do estandarte, nunca terem sido transportados
por mulheres e do Babalotin,15 carregado no cortejo exclusivamente por uma criança do sexo
masculino. Para o caso do Babalotin, apresento uma situação atípica: no Afoxé Oyá Alaxé é uma
menina quem faz o transporte deste totem durante o cortejo. Quais preceitos modificaram essa
prática? A partir de (SAHLINS, 1990) penso que essas modificações podem ser conseqüências da
prática dos sujeitos sobre a estrutura, que o autor chama de Reavaliação Funcional das Categorias.
Esta investigação possibilitará o entendimento das formas como os afoxés de Pernambuco
traduzem as suas transformações, desconstroem práticas ancestrais, reelaboram os seus saberes.
 
Mas, uma primeira análise permite observar que o Candomblé e o Afoxé, como manifestações de
matriz africana, configuram-se como um importante espaço para a construção social do feminino na
sociedade brasileira.
 
Referências
ALBERNAZ. Lady Selma Ferreira. Anais do Encontro Fazendo Gênero 7. Florianópolis, 2006
BENISTE, José. Òrun, Aiyê: o encontro de dois mundos: o sistema de relacionamento nagô-yorubá
entre o céu e a terra. 2ª ed. – Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000
COLLINS, Patrícia H. Black Feminst Thought. Knowledge, Consciousness, and Politics of
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CURY, Cristiane Abdon e CARNEIRO, Sueli. O Poder Feminino no Culto aos Orixás. Revista de
Cultura Vozes nº 2, p. 157-179, Petrópolis, 1990.
LANDES, Ruth, 1908-1991. A cidade das mulheres. Tradução de Maria Lúcia do Eirado Silva;
revisão e notas de Édison Carneiro – 2. ed. Ver. – Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2002.
LODY, Raul Giovani. Afoxé. Ministéio da Educação e Cultura, Rio de Janeiro, 1976
MENEZES, Lia. As Yalorixás do Recife – Recife: Funcultura, 2005
QUEIROZ, Martha Rosa Figueira. Religiões Afro-brasileiras no Recife: intelectuais, policiais e
repressão. Dissertação para obtenção do grau de Mestre em História pela Universidade Federal de
Pernambuco. Recife, 1999.
REAL. Katarina. O folclore no carnaval do Recife. 2. ed. Recife: Massangana, 1990.
RISERIO, Antonio. Carnaval Ijexá. Salvador: Corrupio, 1981.
SAHLINS, Marshall. Ilhas de História. Ed. Jorge Zahar. Rio de Janeiro, 1990.
SILVA, Leonardo Dantas (Org.). Alguns documentos para a história da escravidão. Recife: Editora
Massangana, 1988.
SILVA. Maria Auxiliadora Gonçalves da. Encontros e Desencontros de um Movimento Negro. –
Brasília, Fundação Cultural Palmares, 1994.
SINGER, Paul e BRANT, Vinicius Caldeira (org). São Paulo: o povo em movimento. São Paulo:
Vozes, 1980.
THEODORO, Helena. Mito e Espiritualidade: mulheres negras. – Rio de Janeiro: Pallas ed., 1996
VERGER, Pierre Fatumbi, 1902 – 1996. Orixás deuses yorubás na África e no Novo Mundo. 6ª ed.
– Salvador: Corrupio, 2002.
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1 Grande energia que representa o poder da ancestralidade coletiva feminina.
2 Sacerdote. Cargo hierárquico de maior autoridade masculina em um Terreiro de Candomblé.
3 Sacerdotisa. Cargo hierárquico de maior autoridade feminina em um Terreiro de Candomblé.
4 Depoimento concedido à Prefeitura do Recife 27/09/2002.
5 Sobre as repressões às organizações negras, ver QUEIROZ, Martha Rosa Figueira. Religiões Afro-brasileiras no
Recife: intelectuais, policiais e repressão. Dissertação de Mestre em História - UFPE, 1999.
6 Sobre o Movimento Negro Unificado, ver Silva (1994) e Singer e Brant (1980)
7 Fundado em 1949, o bloco é constituído exclusivamente por homens que usam vestes brancas em referência ao Orixá
Oxaguiã. Este afoxé é modelo para a conformação de grupos em Salvador e outros estados. Sobre o assunto, ver Risério
(1981). No Recife, Afoxé Ilê de África se inspira na estética do Gandhy utilizando lençóis brancos amarrados ao corpo.
Porém tem a particularidade da participação feminina tanto na organização como no cortejo.
8 Acrescento apenas a questão religiosa, como um dos fatores responsáveis pelas relações desiguais entre homens e
mulheres nos grupos de afoxé.
9 O I Encontro Nacional de Mulheres Negras aconteceu em 1988, em Valença, Rio de Janeiro com a participação de
450 militantes de 17 estados brasileiros.
10 Depoimento concedido ao Núcleo da Cultura Afro-Brasileira em 06/05/2004
11 Exposição – Afoxé: encanto e resistência. Centro de Formação, Pesquisa e Memória Cultural – Casa do Carnaval.
2002.
12 Sobre a evolução das idéias feministas, ver Matilde Ribeiro. Dossiê Mulheres Negras – Estudos Feministas, ano 3, 2º
semestre / 95.
13 Mãe Pequena / Pai Pequeno. Auxiliar direto do Babalorixá ou Ialorixá com poderes para substituí-lo(a).
14 Cláudio da Silva, Ogan do Afoxé Alafin Oyó, em entrevista concedida à Prefeitura do Recife em 02/08/2002.
15 O Babalotin é o mais importante símbolo religioso de um Afoxé, é o seu fundamento. Esse totem é considerado uma
representação do espírito ances