Papo de Terreiro: dezembro 2011

Os poderes da Mãe Stella

 

REVISTA DO BRASIL - EDIÇÃO 66 - DEZEMBRO DE 2011

Os poderes da Mãe Stella

Ela lê romances, aprecia vinho e bailes de Carnaval. Entre uma transgressãozinha e outra, sem abrir mão das tradições, é a mãe de santo mais influente da Bahia

Por: Tom Cardoso

Publicado em 18/12/2011

Os poderes da Mãe Stella

Mãe Estella: "Por que misturar São Jorge com Oxóssi" (foto: @ Erik Salles)

O sincretismo não leva a nada. Enfraquece os dois lados

Maria Stella de Azevedo Santos, a Mãe Stella de Oxóssi, ialorixá do terreiro Ilê Axé Opô Afonjá, em Salvador, é uma ialorixá diferente. Ela gosta de romances policiais, vinho tinto chileno, escreve semanalmente artigos, sobre qualquer assunto, para o jornal A Tarde, recebe padres para almoçar e não perde um jogo do Vitória (“Olha só para a minha cara, meu filho, e eu lá tenho cara de torcedora do Bahia?”). Aos 86 anos, Mãe Stella já provocou polêmica ao assumir, relativamente cedo, aos 49, o posto de ialorixá do Opô Afonjá.

A escolha causou desconfiança até mesmo em sua irmã, dona Milta, que foi pedir ajuda a Mãe Menininha do Gantois (1894-1986), na época a mais poderosa – e midiática – mãe de santo da Bahia, que tratou logo de tranquilizá-la: “Isso não é comigo, isso é com os orixás. Eles sabem que Stella tem força, eles a conhecem”. E ela tem. A aparente fragilidade ao descer as escadas para conversar com a Revista do Brasil foi dissipada assim que ela olhou nos olhos do repórter e disse o que costuma repetir a todos que ousam olhá-la com compaixão. “Eu sou de Oxóssi. Enquanto os outros andam a pé, eu vou a cavalo.”

Mãe Menininha partiu e Mãe Stella, apesar de pertencer a outro terreiro, assumiu, em termos de prestígio, o trono de mãe de santo mais poderosa da Bahia. Os estilos são diferentes. “Mãe Menininha era uma doçura de pessoa. Eu já sou pouco acessível, não tenho muita paciência”, confessa. Mãe Stella exerce com prazer e devoção o trabalho de ialorixá, mas isso não quer dizer que aceite ser mãe de santo 24 horas por dia. Quando vai a um restaurante, uma fila já se forma de frente à sua mesa.

Outro dia, uma mulher bateu à porta do Opô Afonjá. Queria saber se o filho passaria no vestibular. “As pessoas confundem muito as coisas. E acho que é culpa dos tempos atuais. Outro dia vi na TV, ou no jornal, não lembro, que uma mãe de santo aceitava consultas pagas em cartão de crédito. Não pode, né? Os templos de candomblé parecem hoje com anfiteatros modernos.”

O Opô Afonjá tem a marca de Mãe Stella. O chão é de terra. Ela se recusou a asfaltá-lo. Também não aceitou que os filhos de santo comprassem modernas máquinas de cortar quiabo e de depenar galinhas. Ela se considera uma mãe de santo moderna, mas conserva antigas tradições. Bate forte nos blocos carnavalescos que costumam usar imagens de orixás em seus figurinos. E não poupou nem o governo quando este autorizou que os postes da cidade fossem decorados com orixás durante a festa. “O Carnaval é uma festa profana. Quer brincar, pular, cantar, tudo bem, mas não misture as coisas”, diz.

A própria Mãe Stella sentiu na pele o peso da tradição, que no candomblé paira acima da passagem do tempo, das transformações sociais e comportamentais. Quando assumiu o terreiro, prestes a completar 50 anos, ela não deixou de frequentar os bailes e clubes. Foi criticada, mas continuou. “Como ialorixá não podia mais me expor como antes, mas nem por isso deixei de viver a minha vida”, diz. Ela já tinha transgredido anos antes, ao decidir trabalhar como enfermeira, numa época em que moças de família eram recomendadas a ficar em casa cuidando do marido e dos filhos. Divorciada, não teve filhos nem aceitou viver como uma amélia.

Primeira mãe de santo a assinar uma coluna em um grande jornal, Mãe Stella escreve à mão os artigos semanais e depois os dita à filha de santo Graziela, que os digita e envia ao jornal A Tarde. A aversão a máquinas de quiabo se estende, claro, a computador, internet etc. Jamais lerá os livros de Erico Verissimo, seu escritor predileto, em um iPad. “Gosto de me atualizar, de conversar com os adolescentes. Mas me deixe longe de qualquer tipo de maquinário.” Ela se informa lendo jornais. Opina sobre qualquer assunto e não deixa de polemizar. Já atacou diretamente a gestão do prefeito de Salvador, João Henrique, evangélico, que costuma não mostrar muita tolerância com terreiros de candomblé. Hoje a relação com o prefeito é razoável, já com os evangélicos... Recentemente, um grupo tentou invadir o Opô Afonjá e foi posto a correr. “São os fanáticos de sempre, que não entendem que vivemos num país laico.”

Aliás, dentro do terreiro funciona uma escola da rede pública, em convênio com a prefeitura. Uma das primeiras providências de Mãe Stella foi vetar o ensino de qualquer religião. “Eu poderia aproveitar que a escola fica dentro do terreiro para pedir que ensinassem o candomblé. Mas religião não se impõe.” Mãe Stella também provocou polêmica ao se declarar radicalmente contra o sincretismo, marca registrada da Bahia. Ela almoça com líder da Igreja Católica, dialoga com o prefeito evangélico, mas não mistura as religiões. “O sincretismo não leva a nada. Enfraquece os dois lados. Não vejo vantagem nenhuma em misturar São Jorge com Oxóssi.”

Uma das 12 cadeiras do ministério de Xangô, o mais alto posto civil do Opô Afonjá, criado em 1937 por Mãe Aninha, é ocupada por Gilberto Gil, que substituiu o escritor Jorge Amado, uma das personalidades baianas mais próximas de Mãe Stella. Paparicada por políticos baianos, que costumam visitá-la em períodos eleitorais, ela nunca se deixou levar por oportunistas. “O político que chega aqui mal-intencionado, à procura de promoção, ou de voto, nem passa da porta”, diz Stella, que mantinha uma relação distante com Antônio Carlos Magalhães. “Era uma relação cordial, e não de paixão, como muitas mães de santo mantinham por ACM. Aliás, não sou apaixonada por ninguém”, diz, do alto de sua independência.

Nada contra as máquinas

Mãe Stella foi a primeira mãe de santo a escrever livros sobre religião. Tem quatro: E daí Aconteceu o Encanto, 1988; Meu Tempo É Agora, 1993; Oxóssi – O Caçador de Alegrias, 2006; e Provérbios, 2007. Também fala fluentemente quatro línguas (inclusive iorubá) e é doutora honoris causa da Universidade Federal da Bahia. Um estofo cultural (ela, de família católica, estudou em colégios particulares) pouco comum a mães de santo. Mesmo assim, confessa: “Nunca estive totalmente segura como ialorixá”.

As cobranças não são poucas, segundo ela. Aos 86 anos, já começa a pensar na sucessão. A sexta ialorixá do Opô Afonjá não será escolhida por ela, e sim por um colegiado. Mas espera que a próxima mãe de santo continue seu legado. Que tenha os olhos apontados para o futuro, sem, jamais, abrir mão das tradições. Ela vai poder usar máquina de cortar quiabo? Mãe Stella abre um sorriso, o primeiro da entrevista, e diz baixinho: “E quem sou eu para lutar contra as máquinas?”