Papo de Terreiro: A tradição africana na Bahia

A tradição africana na Bahia

 

Extraído basicamente da A Família de Santo nos Candomblés Jêje-Nagô da Bahia: um estudo de relações intragrupais, Salvador, Universidade Federal da Bahia, 1977.
Do Livro: Nossos Ancestrais e o Terreiro, pág 33.

Diversos fatores concorreram para que se criasse na Bahia, entre os adeptos do candomblé, ou das religiões afro-brasileiras, como alguns preferem, um ideal de ortodoxia vinculado diretamente as origens africanas dos antigos candomblés. Se a expressão jêje-nagô define satisfatoriamente o modelo sócio-cultural de um tipo de grupo de candomblé, vez que encerra os dois etnônimos caracterizadores da maioria dos padrões africanos remanescentes e identificáveis na maioria dos terreiros da Bahia, não se deve esquecer que a expressão jêje-nagô foi criada por cientistas interessados em categorias e classificações. Mas o povo-de-santo parece ser mais etnocêntrico do que ecumênico no plano de sua religião e, a rigor, não admite "misturas" nos ritos que proclama serem "os mais puros" ou os únicos verdadeiros" de seus respectivos sistemas religiosos.

Os membros de qualquer instituição em processo por que imersos na própria dinâmica social, não percebem, por vezes, nitidamente, os momentos ou estágios – para empregar um termo discutido – ou as etapas sutis da modificação de que participam. Isto ocorre sobretudo nos sistemas religiosos bem estratificados, especialmente quando, por motivo de ordem sócio-política, eles representam também um centro de resistência e de defesa cultural. Este parece ter sido o caso das "religiões africanas" no Brasil; apesar da inevitabilidade do processo de que eram parte e das obvias mudanças ocorridas em suas estruturas, o povo-de-santo se manteve firmemente – e sofridamente – fiel as suas crenças ancestrais e ao mitos genéticos de seus grupos; fidelidade que tem levado alguns lideres religiosos a complicadas racionalizões genealógicas e a fantasiosas interpretações com que se recriam uma historia e uma carta de comportamento ritual.

Os etnólogos falam de jêje-nagô e justificam a expressão, ou, pelo menos, a explicam. Mas o povo-de-santo reconhece diversamente esta situação de coexistência que, para eles, significa apenas uma outra nação de candomblé, onde os elementos teogônicos dos orixás nagôs se mesclassem e se confundissem com os voduns das crenças jejes (1). Mas as grandes casas chamadas de jeje-nagôs em termos taxionômicos e descritivos, se dizem, elas próprias, ou apenas jejes, ou somente nagôs. Exatamente como faziam os candomblés tradicionais de Congo e como o terreiro MANÇO BANDUNQUENQUE, dos falecidos pais-de-santo BERNARDINO DO BATE-FOLHAS e BANDANGUAIME é, sabidamente, "uma casa de Angola" (2). Esses terreiros mantém, contudo, apesar dos mútuos empréstimos ostensivos e das influências perceptíveis no ritual como na linguagem, os padrões mais característicos e distintivos de suas culturas formadoras, como uma espécie de arquétipo da perdida totalidade ontológica original. Esses padrões dominantes são como a linha mestra num processo multilinear da evolução, aceitando ou rejeitando inovações; adaptando-se a circunstancia global; assimilando os empréstimos e adotando as invenções – mas retendo sempre a marca reveladora de sua origem, em meio a integração e a mudança. Dai a falecida ialorixá ANINHA, poder afirmar, com orgulho: "Minha seita é nagô puro" (3). E dizia isto no sentido de que a nação de sua seita, de seu terreiro, e que eram os padrões religiosos em que ela, desde menina, se formara, era nagô. Ai se deve entender nação-de-santo, nação-de-candomblé. Porque, no caso de ANINHA, ela mesma era e se sabia, etnicamente, descendente de africanos gruncis, um povo que ainda hoje habita as savanas do norte de Gana e ao sul do Alto-Volta e que nenhuma relação étnica ou histórica mantinha com iorubás até o trafico negreiro (4). Do mesmo modo que a falecida mãe-de-santo Runhó do antigo terreiro Jêje do Bogum, terreiro importante ao ponto de dar, como o do Gantois, seu nome a todo o bairro em que se situa - falando da historia de sua casa, dizia: "Tiana Jêje, mãe pequena daqui antes da finada Emiliana, tinha marca da nação no rosto. Tiana veio do tempo de meu pai-de-santo. No tempo em que fiz o santo ainda foi com africano na casa. Já a finada Emiliana era crioula (5). E continuava, saudosista: "A primeira mãe-de-santo era Ludovina, que era africana. Os terreiros de Jêje já acabaram tudo, Carabetã, Campina de Bosqueja, Agomenã, tudo..."

Mas a casa do Bogum continua, apesar da melancolia com que vodunsi RUNHÓ lamentava os tempos pretéritos "dos africanos", a manter a tradição de ser a casa mais pura de jeje-marrim que ha na Bahia" (6). Esse terreiro possui diversos assentos de vodus daomenos e sua mãe-de-santo pode passar muito tempo falancio dos mitos de sua nação e contando historias dos velhos tempos em que "os jejes eram respeitados só com o nome". Irmã-de santo da famosa EMILIANA do Bogum (7) a quem substituiu na direção da casa, explicava, ainda: Emiliana morreu ha 15 anos (em 1966) e tinha 92"anos de idade. 0 terreiro foi fundado por africanos e tem mais de 100 anos. Esta é a segunda casa feita aqui no mesmo lugar. A gente quer acabar mas tem tanto santo por ai que veio da África que todos nós só lamenta aquela arvore onde esta assentado Azoano Ado (8)... "Houve a primeira casa que foi dos africanos, depois foi ficando nos caboclos. Esta casa foi construída em 1927, tem mais de trinta anos. A outra era de taipa. Nós não fazia questão de continuar, mas todo mundo dizia – Terreiro é o de Jêje!". Mas também a mãe-de-santo VALENTINA-RUNHÓ do Bogun, quando falava em "Ieiê", estava se referindo a nação de seu terreiro, que de sua própria família biológica ela dizia apenas que era "de africanos".

Percebe-se que tanto a falecida ANINHA como a vodunsi RUNHÓ se nacionalizaram, por assim dizer, por meio do sistema de crenças, dominante no grupo em que se integraram. A nação, portanto, dos antigos africanos na Bahia foi aos poucos perdendo sua conotação política para se transformar num conceito quase exclusivamente teológico. Nação passou a ser, desse modo, o padrão ideológico e ritual dos terreiros de candomblé da Bahia, estes sim, fundados por africanos angolas, congos, jejes, nagôs, – sacerdotes e iniciados de seus antigos cultos, que souberam dar aos grupos que formaram a norma dos ritos e o corpo doutrinário que se vem transmitindo através os tempos e a mudança nos tempos.

Esse processo, entretanto, não eliminou de todo a consciência histórica de muitos descendentes de africanos, que conhecem bem suas origens étnicas a ponto de serem capazes de discorrer – os velhos informantes iletrados – sobre a situação política e geográfica da terra de seus antepassados ao tempo da escravidão (9). Quando a nação política africana se confunde com a nação religiosa dos candomblés e existe uma ponderável tradição histórica que justifique o fenômeno, o sentimento etnocêntrico se acentua, os padrões se cristalizam mais e, portanto, se modificam menos. E isto também concorre para a explicação da predominância regional de certos sistemas de ritos nos candomblés da Bahia.

Das antigas nações africanas que se fixaram na Bahia nos séculos XVIII e XIX e que foram submetidas, pelo contacto, a variados graus de mudança e assimilação, ressalta a dos iorubás-nagôs como a que melhor conservou a configuração africana original.

Na Bahia, pois, os iorubás-nagôs é que centralizaram esse processo, unificando ou aglutinando os africanos de varia origem étnica e sobretudo os crioulos, já parcialmente desligados dos sentimentos nativistas. Falo aqui da predominância da cultura iorubá-nagô, mas não da absorção, por ela, de todas as outras culturas – especialmente dos sistemas religiosos africanos na Bahia. Vale lembrar que esse mesmo processo valorativo da cultura iorubá se observa, no recôncavo baiano, com referencia a cultura jeje, e ainda hoje, na região de Cachoeira, antigas casas de origem jeje mantém os padrões característicos de sua cultura original, naturalmente que modificados, lá como aqui, pela dinâmica sócio-cultural.

Dentre os grupos iorubás-nagôs, por motivos que tentarei explicar ou rever, nação de Ketu, passou a significar o rito de todos os nagôs. Certo essa predominância nagô não pode mais ser explicada como fez NINA., nos termos de uma "superioridade" cultural dos nagôs e de uma maior complexidade nos sistemas cosmogônicos dos povos então classificados como "sudaneses" por oposição aos grupos das nações de angola e de congo, estes colocados na outra categoria da dicotomia clássica, a dos "bantos". Ha que buscar razões de ordem histórica e sócio-antropológica – sem descuidar dos aspectos que a psicologia social melhor esclareceria – para explicar o fato da imposição de um modelo sistemático de comportamento religioso a grupos etnicamente e culturalmente heterogêneos. Que este era o panorama da Bahia no século XIX. 0 contacto explica a etiologia do fenômeno mas não suas motivações essenciais.

VERGER, abordando a questão dessa preeminência dos nagôs de Ketu nos antigos candomblés da Bahia, escreve:

"As razoes desta predominância espiritual podem ser explicadas pelas guerras entre Daomé e Yorubá, e o conseqüente enfraquecimento deste ultimo no principio do século XIX. A cidadela de Ketu, mais exposta a incursão do Daomé, tocada e assolada por guerras seguidas, viu seus habitantes vendidos aos negreiros da Costa. Numerosos sacerdotes dos orixás foram, assim, levados dessa região para a Bahia, ainda no fim da época do trafico de escravos. Elementos das diversas nações iorubanas e daomeanas vizinhas de Ketu, representadas em minoria na Bahia, juntaram-se aos recém-chegados que tinham conhecimentos mais profundos do ritual de sua religião. É por isto que a palavra Ketu ganhou na Bahia, entre os descendentes de africanos, o sentido de reunião, acordo, grupo" (10).

A hipótese interpretativa de VERGER é, em principio, valida, mas sua conhecida predisposição valorizadora da cultura nagô de Ketu o faz minimizar as outras contribuições porventura capazes de melhor documentar a sua hipótese. Nagôs vieram também, como escravos, de muitas outras nações iorubás – Abeokutá, Oió, Ijexá, Ijebu Odé e até da recém-criada, nos princípios do século XIX, Iradã (11). E certamente desses grupos étnicos, além de Ketu, vieram também sacerdotes com seus orixás, seus ritos, seus fundamentos (12). Nada prova, no estado atual da pesquisa historiográfica e antropológica, que os africanos vindos de Ketu fossem mais estruturados do ponto de vista de sistemas religiosos, ou tivessem, como quer VERGER, "um conhecimento mais profundo do ritual de sua religião".

0 caso de Ketu – de todo modo é particularmente importante na determinação desse ideal de pureza ritual; que atribuem, na Bahia, aos candomblés nagôs.

NOTAS:

1. Neste caso, a nação assim formada, do sincretismo pré-atlântico de fons e iorubás, é conhecida na Bahia como nagô-vodunsi. A mãe-de-santo DÓDÓ, do Ilê Obaluaiê, no alto da Favela do Rio Vermelho, afirma: "Minha casa é nagô-vodunsi". ( Entrevista 29, 2' série). 0 pai-de-santo"VICENTE PAULO DOS SANTOS, mais conhecido como VICENTE de OGUM, diz também que seu terreiro é nagô-vodunsi. (Entrevista 1 da 2' série). Na biografia da mãe-de-santo OLGA FRANCISCA REGIS, do terreiro do Alaketu, existe uma referencia a um seu antepassado, de nome Baba Laje, "que era do lado de Jenã, nagô-vodunsi". Ora precisamente Ijena ou Jena é cidade iorubá, fronteiriça dos jejes. Centro portanto de contato e de aculturação nagô-vodunsi.

2. CARNEIRO diz ser esse antigo terreiro "de Congo" (1948, 109). Entretanto a entrevista com o pai-de-santo da casa, BANDANGUAIME – hoje falecido – da o terreiro do Bate-Folha como "de Angola". (Entrevista 9, 1' série). Por outro lado, a mãe-de-santo HELENA de TEMPO, filha-de santo do falecido BERNARDINO do Bate-Folha, portanto irmã-de-Santo de BANDANGUAIME, diz que sua casa tem o apelido de "Bate-Folhinha" devido a sua filiação e as suas ligações religiosas com seu pai-de-santo e que "seu terreiro é da mesma nação de Angola". (Entrevista 17, 2' série). De resto, nas 146 entrevistas utilizadas na feitura deste trabalho, apenas encontrei uma casa de Ängola, Congo, Caboclo" e uma casa que se diz de "Congo-Caboclo". A analise das entrevistas entretanto não permite identificar elementos característicos da nação Congo nesses terreiros.

3. PIERSON, (1945, 357).

4. Os grunces – ou gruncis – são um povo de grupo lingüísto Gur – que alguns autores chamam de Voltaico – e eram conhecidos na Bahia antigamente como "nação de galinha". Cf. NINA RODRIGUES (1932, 312-3); BENDOR SAMUEL (1965,47-55).

5. A palavra foi empregada no antigo sentido – conservado em algumas áreas lingüísticas – de "negro nascido no Brasil".

6. Jeje-marrim é umas das nações jejes conhecidas no Brasil. A expressão alude aos fõs da nação Mahi, ao noroeste de Ketu, e ao norte de Abomé. Dos Mahi escreve CORNEVIN: "C'est leur esprit indépendent, difficile et querelleur, surtout entre eux, qui leur valut le qualificatif de "Ma-Hi-Nou", ce qui signifie presque litéralement "les démangés de la rage"./ Le terme Mahi fut ensuite étendu par les gens d'Abomey a tous les habitants de la région comprise entre les qroupements fon et les groupements yorouba" (1962, 47).

7. Cf.CARNEIRO,(1948,28-109)

8. Vodun daomeano, conhecido nas casas jejes ou que "tem uma parte de jeje". O terreiro da falecida mãe-de-santo CECILIA MOREIRA DE BRITO, em Cosme de Farias, tem como padroeiro a "Azoano, que é o nome que Omulu tem do lado de jeje marrim". (Entrevista 5, 1'. série). A Casa de Obaluâe, da mãe MARIA ANTONIA BISPO DA PAIXÃO; Magujé de Obaluâe, na Federação, tem Azoano igualmente como padroeiro: "Azoane é o dono da Casa".

9. Nomes de rios: acesso as cidades e vilas; nomes e genealogias de reis; guerras inter-tribais são, ainda evocados pelos pais e mães mais antigos, em detalhes coerentes.

10. VEGER, (1962,12-3). Esse ponto de vista foi mais discretamente exposto pelo mesmo autor em sua exaustiva obra Flux et reflux de la Traite des Négres entre le Golfe de Bénin et Bahia de Todos os Santos: "La forte prédominance des yorouba et de leurs moeurs et coutumes a Bahia serait donc explicable par leur venue récente et massive, et la résistance aus influences culturelles de leurs maitres viendrait de la présence, parmi eux de nombreux prisonniers de guerre de classe sociale élevée et de pretres conscients de la valeur de leurs instituitions et fermement attachés aux préceptes de leur réligion". (1968, 8).

11. Ibadã, a maior cidade da atual Nigéria, era, nos começos do século XIX – como Abeocutá – uma vila em formação onde se reuniam refugiados iorubás das guerras inter-tribais que assolavam o pais naquele tempo. Ainda hoje descendentes de africanos na Bahia lembram os nomes dos antigos grupos que formaram abeocutá e dos primeiros tempos de Iabadã.

12. Do verbete FUNDAMENTO em A Linguagem do Candomblé, CEAO: Conhecimento profundo do ritual e da doutrina de sua nação que não exclui uma certa familiaridade com os ritos das outras nações. "Ter muito fundamento" se diz de uma mãe ou pai que conhece, além dos ritos e das cantigas, as técnicas divinatórias e as folhas sagradas que estão associadas intimamente as cerimonias de iniciação e a medicina empírica dos candomblés".

Professor Vivaldo da Costa Lima