Papo de Terreiro: junho 2011

A tradição africana na Bahia

 

Extraído basicamente da A Família de Santo nos Candomblés Jêje-Nagô da Bahia: um estudo de relações intragrupais, Salvador, Universidade Federal da Bahia, 1977.
Do Livro: Nossos Ancestrais e o Terreiro, pág 33.

Diversos fatores concorreram para que se criasse na Bahia, entre os adeptos do candomblé, ou das religiões afro-brasileiras, como alguns preferem, um ideal de ortodoxia vinculado diretamente as origens africanas dos antigos candomblés. Se a expressão jêje-nagô define satisfatoriamente o modelo sócio-cultural de um tipo de grupo de candomblé, vez que encerra os dois etnônimos caracterizadores da maioria dos padrões africanos remanescentes e identificáveis na maioria dos terreiros da Bahia, não se deve esquecer que a expressão jêje-nagô foi criada por cientistas interessados em categorias e classificações. Mas o povo-de-santo parece ser mais etnocêntrico do que ecumênico no plano de sua religião e, a rigor, não admite "misturas" nos ritos que proclama serem "os mais puros" ou os únicos verdadeiros" de seus respectivos sistemas religiosos.

Os membros de qualquer instituição em processo por que imersos na própria dinâmica social, não percebem, por vezes, nitidamente, os momentos ou estágios – para empregar um termo discutido – ou as etapas sutis da modificação de que participam. Isto ocorre sobretudo nos sistemas religiosos bem estratificados, especialmente quando, por motivo de ordem sócio-política, eles representam também um centro de resistência e de defesa cultural. Este parece ter sido o caso das "religiões africanas" no Brasil; apesar da inevitabilidade do processo de que eram parte e das obvias mudanças ocorridas em suas estruturas, o povo-de-santo se manteve firmemente – e sofridamente – fiel as suas crenças ancestrais e ao mitos genéticos de seus grupos; fidelidade que tem levado alguns lideres religiosos a complicadas racionalizões genealógicas e a fantasiosas interpretações com que se recriam uma historia e uma carta de comportamento ritual.

Os etnólogos falam de jêje-nagô e justificam a expressão, ou, pelo menos, a explicam. Mas o povo-de-santo reconhece diversamente esta situação de coexistência que, para eles, significa apenas uma outra nação de candomblé, onde os elementos teogônicos dos orixás nagôs se mesclassem e se confundissem com os voduns das crenças jejes (1). Mas as grandes casas chamadas de jeje-nagôs em termos taxionômicos e descritivos, se dizem, elas próprias, ou apenas jejes, ou somente nagôs. Exatamente como faziam os candomblés tradicionais de Congo e como o terreiro MANÇO BANDUNQUENQUE, dos falecidos pais-de-santo BERNARDINO DO BATE-FOLHAS e BANDANGUAIME é, sabidamente, "uma casa de Angola" (2). Esses terreiros mantém, contudo, apesar dos mútuos empréstimos ostensivos e das influências perceptíveis no ritual como na linguagem, os padrões mais característicos e distintivos de suas culturas formadoras, como uma espécie de arquétipo da perdida totalidade ontológica original. Esses padrões dominantes são como a linha mestra num processo multilinear da evolução, aceitando ou rejeitando inovações; adaptando-se a circunstancia global; assimilando os empréstimos e adotando as invenções – mas retendo sempre a marca reveladora de sua origem, em meio a integração e a mudança. Dai a falecida ialorixá ANINHA, poder afirmar, com orgulho: "Minha seita é nagô puro" (3). E dizia isto no sentido de que a nação de sua seita, de seu terreiro, e que eram os padrões religiosos em que ela, desde menina, se formara, era nagô. Ai se deve entender nação-de-santo, nação-de-candomblé. Porque, no caso de ANINHA, ela mesma era e se sabia, etnicamente, descendente de africanos gruncis, um povo que ainda hoje habita as savanas do norte de Gana e ao sul do Alto-Volta e que nenhuma relação étnica ou histórica mantinha com iorubás até o trafico negreiro (4). Do mesmo modo que a falecida mãe-de-santo Runhó do antigo terreiro Jêje do Bogum, terreiro importante ao ponto de dar, como o do Gantois, seu nome a todo o bairro em que se situa - falando da historia de sua casa, dizia: "Tiana Jêje, mãe pequena daqui antes da finada Emiliana, tinha marca da nação no rosto. Tiana veio do tempo de meu pai-de-santo. No tempo em que fiz o santo ainda foi com africano na casa. Já a finada Emiliana era crioula (5). E continuava, saudosista: "A primeira mãe-de-santo era Ludovina, que era africana. Os terreiros de Jêje já acabaram tudo, Carabetã, Campina de Bosqueja, Agomenã, tudo..."

Mas a casa do Bogum continua, apesar da melancolia com que vodunsi RUNHÓ lamentava os tempos pretéritos "dos africanos", a manter a tradição de ser a casa mais pura de jeje-marrim que ha na Bahia" (6). Esse terreiro possui diversos assentos de vodus daomenos e sua mãe-de-santo pode passar muito tempo falancio dos mitos de sua nação e contando historias dos velhos tempos em que "os jejes eram respeitados só com o nome". Irmã-de santo da famosa EMILIANA do Bogum (7) a quem substituiu na direção da casa, explicava, ainda: Emiliana morreu ha 15 anos (em 1966) e tinha 92"anos de idade. 0 terreiro foi fundado por africanos e tem mais de 100 anos. Esta é a segunda casa feita aqui no mesmo lugar. A gente quer acabar mas tem tanto santo por ai que veio da África que todos nós só lamenta aquela arvore onde esta assentado Azoano Ado (8)... "Houve a primeira casa que foi dos africanos, depois foi ficando nos caboclos. Esta casa foi construída em 1927, tem mais de trinta anos. A outra era de taipa. Nós não fazia questão de continuar, mas todo mundo dizia – Terreiro é o de Jêje!". Mas também a mãe-de-santo VALENTINA-RUNHÓ do Bogun, quando falava em "Ieiê", estava se referindo a nação de seu terreiro, que de sua própria família biológica ela dizia apenas que era "de africanos".

Percebe-se que tanto a falecida ANINHA como a vodunsi RUNHÓ se nacionalizaram, por assim dizer, por meio do sistema de crenças, dominante no grupo em que se integraram. A nação, portanto, dos antigos africanos na Bahia foi aos poucos perdendo sua conotação política para se transformar num conceito quase exclusivamente teológico. Nação passou a ser, desse modo, o padrão ideológico e ritual dos terreiros de candomblé da Bahia, estes sim, fundados por africanos angolas, congos, jejes, nagôs, – sacerdotes e iniciados de seus antigos cultos, que souberam dar aos grupos que formaram a norma dos ritos e o corpo doutrinário que se vem transmitindo através os tempos e a mudança nos tempos.

Esse processo, entretanto, não eliminou de todo a consciência histórica de muitos descendentes de africanos, que conhecem bem suas origens étnicas a ponto de serem capazes de discorrer – os velhos informantes iletrados – sobre a situação política e geográfica da terra de seus antepassados ao tempo da escravidão (9). Quando a nação política africana se confunde com a nação religiosa dos candomblés e existe uma ponderável tradição histórica que justifique o fenômeno, o sentimento etnocêntrico se acentua, os padrões se cristalizam mais e, portanto, se modificam menos. E isto também concorre para a explicação da predominância regional de certos sistemas de ritos nos candomblés da Bahia.

Das antigas nações africanas que se fixaram na Bahia nos séculos XVIII e XIX e que foram submetidas, pelo contacto, a variados graus de mudança e assimilação, ressalta a dos iorubás-nagôs como a que melhor conservou a configuração africana original.

Na Bahia, pois, os iorubás-nagôs é que centralizaram esse processo, unificando ou aglutinando os africanos de varia origem étnica e sobretudo os crioulos, já parcialmente desligados dos sentimentos nativistas. Falo aqui da predominância da cultura iorubá-nagô, mas não da absorção, por ela, de todas as outras culturas – especialmente dos sistemas religiosos africanos na Bahia. Vale lembrar que esse mesmo processo valorativo da cultura iorubá se observa, no recôncavo baiano, com referencia a cultura jeje, e ainda hoje, na região de Cachoeira, antigas casas de origem jeje mantém os padrões característicos de sua cultura original, naturalmente que modificados, lá como aqui, pela dinâmica sócio-cultural.

Dentre os grupos iorubás-nagôs, por motivos que tentarei explicar ou rever, nação de Ketu, passou a significar o rito de todos os nagôs. Certo essa predominância nagô não pode mais ser explicada como fez NINA., nos termos de uma "superioridade" cultural dos nagôs e de uma maior complexidade nos sistemas cosmogônicos dos povos então classificados como "sudaneses" por oposição aos grupos das nações de angola e de congo, estes colocados na outra categoria da dicotomia clássica, a dos "bantos". Ha que buscar razões de ordem histórica e sócio-antropológica – sem descuidar dos aspectos que a psicologia social melhor esclareceria – para explicar o fato da imposição de um modelo sistemático de comportamento religioso a grupos etnicamente e culturalmente heterogêneos. Que este era o panorama da Bahia no século XIX. 0 contacto explica a etiologia do fenômeno mas não suas motivações essenciais.

VERGER, abordando a questão dessa preeminência dos nagôs de Ketu nos antigos candomblés da Bahia, escreve:

"As razoes desta predominância espiritual podem ser explicadas pelas guerras entre Daomé e Yorubá, e o conseqüente enfraquecimento deste ultimo no principio do século XIX. A cidadela de Ketu, mais exposta a incursão do Daomé, tocada e assolada por guerras seguidas, viu seus habitantes vendidos aos negreiros da Costa. Numerosos sacerdotes dos orixás foram, assim, levados dessa região para a Bahia, ainda no fim da época do trafico de escravos. Elementos das diversas nações iorubanas e daomeanas vizinhas de Ketu, representadas em minoria na Bahia, juntaram-se aos recém-chegados que tinham conhecimentos mais profundos do ritual de sua religião. É por isto que a palavra Ketu ganhou na Bahia, entre os descendentes de africanos, o sentido de reunião, acordo, grupo" (10).

A hipótese interpretativa de VERGER é, em principio, valida, mas sua conhecida predisposição valorizadora da cultura nagô de Ketu o faz minimizar as outras contribuições porventura capazes de melhor documentar a sua hipótese. Nagôs vieram também, como escravos, de muitas outras nações iorubás – Abeokutá, Oió, Ijexá, Ijebu Odé e até da recém-criada, nos princípios do século XIX, Iradã (11). E certamente desses grupos étnicos, além de Ketu, vieram também sacerdotes com seus orixás, seus ritos, seus fundamentos (12). Nada prova, no estado atual da pesquisa historiográfica e antropológica, que os africanos vindos de Ketu fossem mais estruturados do ponto de vista de sistemas religiosos, ou tivessem, como quer VERGER, "um conhecimento mais profundo do ritual de sua religião".

0 caso de Ketu – de todo modo é particularmente importante na determinação desse ideal de pureza ritual; que atribuem, na Bahia, aos candomblés nagôs.

NOTAS:

1. Neste caso, a nação assim formada, do sincretismo pré-atlântico de fons e iorubás, é conhecida na Bahia como nagô-vodunsi. A mãe-de-santo DÓDÓ, do Ilê Obaluaiê, no alto da Favela do Rio Vermelho, afirma: "Minha casa é nagô-vodunsi". ( Entrevista 29, 2' série). 0 pai-de-santo"VICENTE PAULO DOS SANTOS, mais conhecido como VICENTE de OGUM, diz também que seu terreiro é nagô-vodunsi. (Entrevista 1 da 2' série). Na biografia da mãe-de-santo OLGA FRANCISCA REGIS, do terreiro do Alaketu, existe uma referencia a um seu antepassado, de nome Baba Laje, "que era do lado de Jenã, nagô-vodunsi". Ora precisamente Ijena ou Jena é cidade iorubá, fronteiriça dos jejes. Centro portanto de contato e de aculturação nagô-vodunsi.

2. CARNEIRO diz ser esse antigo terreiro "de Congo" (1948, 109). Entretanto a entrevista com o pai-de-santo da casa, BANDANGUAIME – hoje falecido – da o terreiro do Bate-Folha como "de Angola". (Entrevista 9, 1' série). Por outro lado, a mãe-de-santo HELENA de TEMPO, filha-de santo do falecido BERNARDINO do Bate-Folha, portanto irmã-de-Santo de BANDANGUAIME, diz que sua casa tem o apelido de "Bate-Folhinha" devido a sua filiação e as suas ligações religiosas com seu pai-de-santo e que "seu terreiro é da mesma nação de Angola". (Entrevista 17, 2' série). De resto, nas 146 entrevistas utilizadas na feitura deste trabalho, apenas encontrei uma casa de Ängola, Congo, Caboclo" e uma casa que se diz de "Congo-Caboclo". A analise das entrevistas entretanto não permite identificar elementos característicos da nação Congo nesses terreiros.

3. PIERSON, (1945, 357).

4. Os grunces – ou gruncis – são um povo de grupo lingüísto Gur – que alguns autores chamam de Voltaico – e eram conhecidos na Bahia antigamente como "nação de galinha". Cf. NINA RODRIGUES (1932, 312-3); BENDOR SAMUEL (1965,47-55).

5. A palavra foi empregada no antigo sentido – conservado em algumas áreas lingüísticas – de "negro nascido no Brasil".

6. Jeje-marrim é umas das nações jejes conhecidas no Brasil. A expressão alude aos fõs da nação Mahi, ao noroeste de Ketu, e ao norte de Abomé. Dos Mahi escreve CORNEVIN: "C'est leur esprit indépendent, difficile et querelleur, surtout entre eux, qui leur valut le qualificatif de "Ma-Hi-Nou", ce qui signifie presque litéralement "les démangés de la rage"./ Le terme Mahi fut ensuite étendu par les gens d'Abomey a tous les habitants de la région comprise entre les qroupements fon et les groupements yorouba" (1962, 47).

7. Cf.CARNEIRO,(1948,28-109)

8. Vodun daomeano, conhecido nas casas jejes ou que "tem uma parte de jeje". O terreiro da falecida mãe-de-santo CECILIA MOREIRA DE BRITO, em Cosme de Farias, tem como padroeiro a "Azoano, que é o nome que Omulu tem do lado de jeje marrim". (Entrevista 5, 1'. série). A Casa de Obaluâe, da mãe MARIA ANTONIA BISPO DA PAIXÃO; Magujé de Obaluâe, na Federação, tem Azoano igualmente como padroeiro: "Azoane é o dono da Casa".

9. Nomes de rios: acesso as cidades e vilas; nomes e genealogias de reis; guerras inter-tribais são, ainda evocados pelos pais e mães mais antigos, em detalhes coerentes.

10. VEGER, (1962,12-3). Esse ponto de vista foi mais discretamente exposto pelo mesmo autor em sua exaustiva obra Flux et reflux de la Traite des Négres entre le Golfe de Bénin et Bahia de Todos os Santos: "La forte prédominance des yorouba et de leurs moeurs et coutumes a Bahia serait donc explicable par leur venue récente et massive, et la résistance aus influences culturelles de leurs maitres viendrait de la présence, parmi eux de nombreux prisonniers de guerre de classe sociale élevée et de pretres conscients de la valeur de leurs instituitions et fermement attachés aux préceptes de leur réligion". (1968, 8).

11. Ibadã, a maior cidade da atual Nigéria, era, nos começos do século XIX – como Abeocutá – uma vila em formação onde se reuniam refugiados iorubás das guerras inter-tribais que assolavam o pais naquele tempo. Ainda hoje descendentes de africanos na Bahia lembram os nomes dos antigos grupos que formaram abeocutá e dos primeiros tempos de Iabadã.

12. Do verbete FUNDAMENTO em A Linguagem do Candomblé, CEAO: Conhecimento profundo do ritual e da doutrina de sua nação que não exclui uma certa familiaridade com os ritos das outras nações. "Ter muito fundamento" se diz de uma mãe ou pai que conhece, além dos ritos e das cantigas, as técnicas divinatórias e as folhas sagradas que estão associadas intimamente as cerimonias de iniciação e a medicina empírica dos candomblés".

Professor Vivaldo da Costa Lima

Axé: a força vital do Candomblé e o mundo dinâmico da Física moderna

 

João Pessoa - Número Zero - Dezembro de 1999

Axé: a força vital do Candomblé e o mundo dinâmico da Física moderna

Se o pensamento científico pretende descrever e explicar a realidade, é forçado a usar seu método geral, que é o da classificação e da sistematização. A vida é dividida em províncias separadas que são claramente distinguidas umas das outras. Os limites entre os reinos das plantas, dos animais, do homem - as diferenças entre espécies, famílias, gêneros - são fundamentais e indeléveis. Mas a mente primitiva as ignora e as rejeita. Sua visão da vida é sintética, e não analítica. A vida não é dividida em classes e subclasses. É sentida como um todo contínuo e ininterrupto que não admite distinções nítidas e claras.(...) Se existe algum aspecto característico e destacado do mundo místico, qualquer lei que o governe, é a lei da metamorfose. Mesmo assim, dificilmente poderíamos explicar a instabilidade do mundo mítico pela incapacidade do homem primitivo para apreender as diferenças empíricas das coisas. Quanto a isso, o selvagem muitas vezes prova a sua superioridade em relação ao mundo civilizado. É suscetível a muitos aspectos distintivos que escapam à nossa atenção.

Ernest Cassirer, Ensaio sobre o homem.

O atual avanço das Ciências e da Filosofia tem ocasionado uma nova visão do mundo, aproximando ou religando o homem à natureza. Ao contrário do que se propunha anteriormente, não se fala hoje em homem dominando a natureza através do desenvolvimento científico, mas interagindo com ela. Nas palavras de Ilya Prigogine e Isabelle Stengers "A ciência é um jogo arriscado, mas parece ter descoberto questões às quais a natureza responde de maneira coerente, uma linguagem teórica pela qual inúmeros processos se deixam decifrar. Esse sucesso da ciência moderna constitui um fato histórico; não predizível a priori, mas incontornável desde que ocorreu, a partir do momento em que, no seio duma dada cultura, esse tipo particular de questão passou a desempenhar o papel de chave de decifração. Logo que tal ponto foi atingido, deu-se uma transformação sem retorno das nossas relações com a natureza que produziu o sucesso da ciência moderna. Nesse sentido pode-se falar de revolução científica" (2).

Outra relação que mudou com essa "revolução científica" foi a da ciência com a religião. Com a crise dos antigos paradigmas científicos, boa parte dos pesquisadores tem se dedicado a fazer releituras de religiões e do próprio sentimento religioso ou religiosidade. O que se deu então foi uma interpretação tida como esotérica ou pseudo-científica por parte dos positivistas ou iluministas. Seja na Filosofia, na Biologia, na Física, na Psicologia, nas Ciências Sociais - as principais afluentes -, o que se buscou foi romper com o paradigma cartesiano-newtoniano extremamente determinista.

Este artigo tem como inspiração um dos livros mais conhecidos e discutidos dessa nova safra de obras científicas, O Tao da Física, de Fritjof Capra. Nele, Capra faz um paralelo entre o mundo visto pela ótica do misticismo oriental e a Física moderna. Para ele, o avanço da Física Quântica e da Física Relativística levou a uma aproximação entre o pensamento científico e o pensamento místico-religioso.

A exemplo de Capra, faremos um paralelo, este sendo entre a visão do mundo da Física moderna e a dos adeptos do Candomblé. Pretendemos mostrar que o Candomblé, como culto aos Orixás, as "personificações das forças da natureza" (3), que tem no termo Axé a designação da força vital presente em todos os seres, acha-se em consenso com os novos paradigmas científicos.

Um aspecto fundamental da visão moderna da Física é o caráter dinâmico que toma o universo, não mais dividido em partes sólidas isoladas, mas sim tido como uma teia de interconexões. "No nível subatômico, os objetos materiais sólidos da Física clássica dissolvem-se em padrões de probabilidade semelhantes a ondas; esses padrões, em última instância, não representam probabilidades de coisa, mas, sim, probabilidades de interconexões.[...] A teoria quântica revela, assim, uma unidade básica no universo" (4). Os físicos quânticos em seus estudos subatômicos chegaram à conclusão de que não podemos falar de unidades fundamentais do cosmos. As partículas subatômicas, segundo a Física Quântica, são também ondas de energia. Não é possível se afirmar exatamente onde está uma partícula subatômica, trabalha-se nesse nível com probabilidades de localização, quanto mais reduzido o espaço para verificação, mais rapidamente ela se movimentará para os lados. O que no mundo macroscópico vemos como estático, ou "inerte", usando um termo da física newtoniana, é, no nível subatômico, uma incessante interação entre partículas, ou melhor, interação energética entre partículas. As partículas, portanto, só podem ser pensadas como participantes desse processo e não isoladamente como unidades independentes.

Dessa forma o "mundo quântico" descrito por Capra assemelha-se com o "mundo sagrado" na concepção de Mircea Eliade. "Se ampliarmos um pedaço 'morto' de pedra ou de metal, veremos que este se encontra cheio de atividade. Quanto mais próxima é nossa observação, mais viva se apresenta a matéria" (5). "O Cosmos é ao mesmo tempo um organismo real, vivo e sagrado: revela as modalidades do Ser e da sacralidade" (6).

A visão atual da ciência do "mundo dinâmico" deve muito também à descoberta por parte dos físicos relativísticos da equivalência entre os conceitos de massa e energia. A famosíssima equação E=mc2 expressa a igualdade da energia contida numa partícula em relação à massa da partícula multiplicada pelo quadrado da velocidade da luz. Tal fórmula pôde ser comprovada nos estudos com colisão de partículas subatômicas, quando a energia contida na massa das partículas pode ser transformada em energia cinética e esta, por sua vez, pôde ser transformada em massa de novas partículas. "A teoria da relatividade demonstrou que a massa nada tem a ver com substância, sendo, isso sim, uma forma de energia. A energia, entretanto, é uma quantidade dinâmica associada com a atividade, ou com processos" (7). As partículas passaram a ser tratadas a partir de então como "pacotes de energia" denominados quanta e, mais tarde, fótons.

Essa teoria da Física moderna, da energia como princípio vital do universo, já era uma idéia presente não só na filosofia oriental, como mostra Capra, mas também nas demais tradições religiosas. Notamos então que o conceito de Tao para os taoístas, Brahman para os hindus, de Dharmakaya ou Tathata para os budistas assemelha-se com o conceito de Axé no Candomblé. Assim podemos muito bem juntar à descrição de um místico oriental, "As coisas recebem seu ser e sua natureza por dependência mútua e, em si mesmas, elas nada são" (8); a de um físico moderno, "O mundo afigura-se assim como um complicado tecido de eventos, no qual conexões de diferentes tipos se alternam ou se sobrepõem, ou se combinam, determinando, assim, a textura do todo" (9); e as de estudiosos do Candomblé, "Esta fuerza no es inmóvil. Por el contrario, sólo es si es transmitida: 'axé necesita axé' es el principio del sistema que ordena la circularidad de la potencia mística por todos los seres, vegetales, agua, miel, sangre, hombres, dioses. La propria universalidad del axé, además, rechaza toda personalización. Esta fuerza escapa a cualquier individualidad. Es del dominio de lo contínuo, una fuerza indiferenciada que unifica y homogeneiza al mundo" (10), "a força não é um atributo do ser, mas o próprio ser, encarado numa perspectiva dinâmica (e não estática, tal como se dá na ontologia judaico-cristã): o mundo não é; o mundo se faz, acontece" (11). Seja na Física moderna, no misticismo oriental ou no Candomblé, o universo tem como unidade básica fundadora "energia". Energia em contínua interação e interligação como processo mesmo de realização.

O filho-de-santo a partir da sua iniciação no Candomblé tem contato com esta energia, quando ele entra no mundo do Axé. É na iniciação que se dá o primeiro passo na doutrinação iorubá, a "feitura no santo". Nesse momento o filho-de-santo conhece os seres que criaram e que comandam o mundo encantado e o mundo material, aqueles que vão cuidar dos seus filhos e que por eles também serão servidos e cultuados para manutenção do Axé. Ele descobre qual o seu santo, pela primeira vez ele é "cavalo" do Orixá, isto é, ele tem a sua primeira e fundamental experiência no Candomblé, ele é possuído pelo seu Orixá.

Axé não pode, no entanto, ser pensado como algo doado pelos Orixás ao filho-de-santo ou vice-versa. Os Orixás são considerados ancestrais detentores de Axé que se valeram dessa força geradora para criar o mundo. Na organização contemporânea eles necessitam, no entanto, do fortalecimento e da manutenção da energia. O Axé depende diretamente da relação entre o que é oferecido pelo filho (alimentos, animais sacrificados, obrigações, etc.) e como esse tem os seus objetivos satisfeitos mediante proteção, aconselhamento, cura ou qualquer tipo de intervenção do Orixá que demonstre poder.

O equilíbrio energético que se mantém com a dinâmica interação entre dois pólos, assim como é visualizado com o símbolo chinês do yin e yang, no Candomblé se efetiva na relação filho de santo e Orixá. A possessão é de fundamental importância nessa interação energética. Aos olhos do povo de santo é nesse processo que se encontram os dois pólos interagindo no mundo material. Se, por um lado, o Orixá como personificação das forças agentes no mundo tem o seu Axé, ele é abstrato, não pode ser visualizado e, portanto, cultuado; ele não concretiza-se sem o seu filho. Torna-se imprescindível uma complementaridade material, o elegun ou "cavalo do santo". O filho tem para si o seu santo particular, que só "nasce" quando incorporado. Não se ouve de um filho de santo que ele foi possuído por "Xangô" ou "Iemanjá", mas por "seu Xangô" ou por "sua Iemanjá", aquele que só veio ao mundo porque o tem como elegun. É o que afirma Rira Laura Segato, no livro Santos e Daimones, "Assim, o Orixá que manifesta na possessão interagindo com os seres humanos não é entendido como o Orixá abstrato, mas como uma de suas infinitas instâncias, que somente existe na e através da pessoa concreta de um filho" (12).

Se no Candomblé a interação do concreto (filho-de-santo) e do abstrato (Orixá) dá o equilíbrio dinâmico do Axé, os físicos têm unificado conceitos aparentemente independentes ou até mesmo contraditórios. Partícula e onda, espaço e tempo, existência e não-existência e vazio e forma são termos não mais vistos na qualidade de antíteses. Na nova realidade quântica-relativística eles são unidos não só nos conceitos de quantum ou fóton, mas também em termos como espaço-tempo quadridimensional e campo quantizado.

Como visto acima, o quantum ou fóton apresenta-se sob a forma de onda ou de partícula. A Eletrodinâmica quântica entende que, por se tratar de uma onda, o fóton é um campo vibratório, logo, o fóton como uma onda eletromagnética é um campo eletromagnético; temos assim o campo quantizado. Com a teoria do campo quantizado, os físicos chegaram à conclusão de que não há vazio ou matéria no universo. "O campo quantizado é concebido como entidade física fundamental, um meio contínuo que está presente em todos os pontos do espaço" (13). A concentração de energia em determinados espaços do campo é verdadeiramente o que entendemos por partícula. Segundo Einstein, "podemos então considerar a matéria como constituída por regiões do espaço nas quais o campo é extremamente intenso.[...] Não há lugar nesse novo tipo de Física para campo e matéria, pois o campo é a única realidade" (14). A Eletrodinâmica quântica forneceu dessa forma uma prova a mais da correlação entre matéria e energia na definição do espaço em que vivemos.

Para entendermos o conceito de mundo quadridimensional nos guiemos uma vez mais pelas palavras de Capra: "o mundo quadridimensional da Física relativística é o mundo onde a força e a matéria acham-se unificadas, onde a matéria pode aparecer como partículas descontínuas ou como um campo contínuo" (15). Albert Einstein provou que, sabendo-se que os eventos não ocorrem no mesmo instante em que são observados, tanto a posição em que se encontra o observador em relação ao evento como (supondo um possível deslocamento à velocidade da luz) a velocidade do observador são determinantes na percepção do fato. Imaginando dois observadores, um parado em relação ao evento e outro se movendo a uma velocidade próxima à da luz, o evento ocorrerá diferentemente para um e para outro. "Não é possível, portanto, falar-se acerca do 'universo num dado instante' de maneira absoluta; o espaço absoluto independente do observador não existe" (16). Com isso, não só o tempo, mas também o espaço torna-se relativo. "A teoria da relatividade mostrou que o espaço não é tridimensional e que o tempo não é uma entidade isolada. Ambos se acham íntima e inseparavelmente conectados e formam um continuum quadridimensional denominado 'espaço-tempo' " (17).

N'O Tao da Física, Capra se utiliza de diagramas de espaço-tempo onde são retratadas a criação e a destruição de partículas para exemplificar e facilitar o entendimento da teoria relativística. A colisão entre elétrons e fótons no espaço é visualizado com o eixo do tempo de baixo para cima e o espaço da esquerda para a direita. Como para cada partícula existe uma antipartícula, o evento que se refere à partícula entende-se que ocorra do passado para o futuro, ou seja, é lido de baixo para cima, nosso tempo convencional. Já com relação à antipartícula lê-se de cima para baixo, ocorreria deste modo do futuro para o passado. "Uma vez que todas as partículas podem se deslocar para a frente e para trás no tempo - assim como elas podem se deslocar para a esquerda e para a direita no espaço -, não faz sentido impor um fluxo unilateral de tempo nos diagramas. Estes são apenas mapas quadridimensionais traçados no espaço-tempo, de tal sorte que não podemos falar de qualquer seqüência temporal" (18). Os físicos conseguiram assim transcender os conceitos de tempo e espaço, esses não são mais verdades supremas, eles superaram, a exemplo dos místicos, o tempo ordinário, como diz Eliade, "tal como o espaço, o tempo não é, para o homem religioso, nem homogêneo nem contínuo[...] o tempo sagrado é por sua própria natureza reversível" (19).

Uma outra característica notável é a importância que adquire o observador nessa nova teoria física. Ele não é mais tratado como algo à parte no evento, mas, ao contrário, como uma peça chave para a determinação deste. O observador-participante na ótica da física relativística tem uma característica que o assemelha ao filho de santo: a "iniciação". É necessário uma iniciação nas doutrinas da física para que se possa reconhecer tal fenômeno. "Os físicos podem 'vivenciar' o mundo quadridimensional do espaço-tempo através do formalismo matemático abstrato de suas teorias; sua imaginação visual - como a de todos nós -, contudo, acha-se limitada pelo mundo tridimensional dos sentidos" (20). De tal forma que, assim como apenas o iniciado no Candomblé sente a irradiação do seu Orixá, só alguém com conhecimento da simbologia físico-matemática pode experimentar a quadridimensionalidade.

A revolução no pensamento científico e filosófico ocidental se fez notar com a crise dos antigos modelos. A base de todos os estudos naturais e sociais havia sido implodida, o objetivismo e suas certezas foram postos em cheque. O distanciamento dessa nova ciência da ética judaico-cristã é facilmente perceptível nas palavras de Prigogine e Stengers sobre o modelo cartesiano-newtoniano: "O homem da ciência, já representado como um asceta, transforma-se numa espécie de mago, detentor potencial de uma chave universal e, portanto, de um saber todo-poderoso. Voltamos aqui a um tema já abordado: é somente num mundo simples, e singularmente no mundo da ciência clássica, onde a complexidade é apenas aparente, que um saber, qualquer que seja ele, pode constituir uma chave universal" (21).

Com isso advém uma maneira de pensar holística. O fruto dessa revolução veio na forma de uma nova hipótese: a bootstrap. Veremos agora como o Candomblé está bem mais próximo dessa filosofia do que do modelo cartesiano e das suas influências na Ciência Ocidental.

Segundo a explicação de Capra, "a hipótese bootstrap não apenas nega a existência de componentes fundamentais da matéria como rejeita quaisquer entidades fundamentais -leis, equações ou princípios fundamentais -, abandonando, dessa forma, outra idéia que, durante centenas de anos, constituiu uma parte essencial da ciência natural.(...) Nenhuma das propriedades de qualquer parte dessa teia é fundamental; todas decorrem das propriedades das outras partes, e a consistência global de suas inter-relações mútuas determina a estrutura de toda a teia" (22). As palavras de Fernando Giobellina Brumana deixam bem explícita a semelhança com o Candomblé: "los santos sólo pueden brindar fuerza mística si ellos, a su vez, la reciben mediante las ofrendas. El axé no es producto ni efecto de las entidades místicas; es una instancia autónoma sobre cuya creación u origen el culto no necesita manifestarse. Es la propria fuerza de la Natureza, que no le viene de lugar alguno, sino de sí misma, y si el hombre la posée, es en su condición de ser natural" (23). Ou como afirma Muniz Sodré, "nessa ontologia, todo e qualquer ser - animal, vegetal, mineral, humano - é dotado de uma certa força.(...)Diferentemente da metafísica ocidental de inspiração judaico-cristã, que entende o ser como estático, como 'aquilo que é', o pensamento banto equipara ser a força" (24). Tem-se assim a força espalhada por todo o cosmos, em todos os seres, em tudo há "vida", há força, não como doação ou benção de um ente supremo, mas como uma força em "si mesma", cultivada na interação homem - natureza, ou mais especificamente, força do homem - força da natureza. Na filosofia bootstrap e no Candomblé não há espaço para o fundamentalismo, o universo é o resultado de um diálogo entre partes "autoconsistentes". O Axé está nas partes, ou seja, no filho de santo e no Orixá, mas somente quando estão relacionando-se, interagindo.

Concluindo pode-se ver que, seja no discurso dos "novos paradigmas", seja no discurso de uma "religião primitiva", a explicação cartesiana-newtoniana - ou judaico-cristã - do mundo não é suficiente. Uma nova forma de pensar (voltada para o reencontro do homem com a natureza) busca reparar os erros dos que viam na subordinação da natureza ao homem, o objetivo mesmo da racionalidade. Nesse momento, Orixás, Babalorixás, Ialorixás, filhos-de-santo, físicos, químicos e filósofos se unem para lembrar que o homem, além de racional, cultural é também biológico, natural.

Notas

1) Aluno do Curso de Comunicação Social - DECOM - UFPb.
2) PRIGOGINE, Ilya & STENGERS, Isabelle. A nova aliança, Brasília, UnB, 1997, p. 9.
3) BENISTE, José. Òrun Àiyé -O Encontro de Dois Mundos, Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 1997, p. 79.
4) CAPRA, Fritjof. O Tao da Física. São Paulo, Cultrix, 1991, p. 58.
5) CAPRA, Op. Cit., p. 150.
6) ELIADE, Mircea, O Sagrado e o Profano, São Paulo, Martins Fontes, 1996, p. 100.
7) CAPRA, Op. Cit., p. 65.
8) NAGARJUNA, cit. In: CAPRA, Op. Cit., p. 109.
9) HEISENBERG, Werner. Physics and Phylosophy, Nova York, Harper Torchbooks, 1958, cit. In: CAPRA, Op. Cit., p. 109.
10) BRUMANA, Fernando Giobellina. Las Formas de los Dioses, Cádiz, Universidad de Cádiz, 1994, p. 410.
11) SODRÉ, Muniz. O Terreiro e a Cidade, Petrópolis, Vozes, 1988, p. 86.
12) SEGATO, Rita Laura. Santos e Daimones, Brasília, UnB, 1995, p. 98.
13) CAPRA, Op. Cit., p. 160.
14) EINSTEIN, Albert. Cit. In: CAPRA, Op. Cit., p. 160.
15) CAPRA, Op. Cit., p. 117.
16) CAPRA, Op. Cit., p. 129-130.
17) CAPRA, Op. Cit., p. 131.
18) CAPRA, Op. Cit., p. 144.
19) ELIADE, Op. Cit., p. 63.
20) CAPRA, Op. Cit., p. 117.
21) PRIGOGINE & STENGERS, Op. Cit., p. 13.
22) CAPRA, Op. Cit., p. 214.
23) BRUMANA, Op. Cit., p. 410.
24) SODRÉ, Op. Cit., p. 86.

Luis Gustavo P. S. Correia

IIê-Ifé : o Berço Religioso dos Yorubas

Ilê-Ifé a origem do Mundo

A cidade de Ilê-Ifé é considerada pelos yorubas o lugar de origem de suas primeiras tribos. lfé é o berço de toda religião tradicional yoruba (a religião dos Òrìsà, o Candomblé do Brasil) ,é um lugar sagrado, onde os deuses ali chegaram, criaram e povoaram o mundo e depois ensinaram aos mortais como os cultuarem, nos primórdios da civilização. Ilê-Ifé é o "Berço da Terra".

"Em um tempo onde os Deuses e Heróis andavam na terra com os Homens."

Olódùmarè

Olódùmarè o ser superior dos yorubas, que vive num universo paralelo ao nosso, conhecido como Òrún, por isso Ele é também conhecido como Àjàlórún e Olórun "Senhor ou Rei do Òrún", que através dos Òrìsà por Ele criado, resolve incumbir um dos Òrìsà funfun (do branco), Òrínsànlá, (o grande Òrìsà) o primeiro a ser criado, também chamado de Òrìsà-nlá e de Obàtálá, de criar e governar o futuro Àiyé : a Terra, do nosso universo conhecido. Ele lhe entrega o Àpò-Iwá (a sacola da existência) o qual contém todas as coisas necessárias para a criação, e é aclamado como Aláàbáláàse, "Senhor que tem o poder de sugerir e realizar". Como a tradição mandava, para todos, antes de iniciar a viagem ele foi consultar o oráculo de Ifá, com Òrúnmìlà, outro Òrìsà funfun, e este lhe orientou a fazer alguns sacrifícios a divindade Èsù, mas se ele já era orgulhoso e prepotente, mais ainda ficou, se recusou e nada fez, mas foi avisado que infortúnios poderiam ocorrer.

Òrìsànlá, de posse do Àpò-Iwá, põe-se a caminhar pelo Òrún, para chegar à "porta do espaço", até então um vazio, que viria a ser o Àiyé. Ele é o Òrìsà que usa um cajado ritual conhecida como òpásóró, durante o caminho, com muita sede, ele se defronta com o igi-òpé (árvore do dendêzeiro) e com o seu òpásóró, perfura o caule da árvore da qual começa a "jorrar o emu" (vinho de palma), e põe-se a beber, a tal ponto, que cai totalmente embriagado no pé da palmeira e dorme profundamente. O infortúnio começa acontecer.

Odùduwà, outro Òrìsà funfun, o segundo criado por Olódùmarè, por conceito "irmão mais novo" de Òrìsànlá, ficou enciumado, porque Olódùmarè tinha entregado a Òrìsànlá o Àpò-Iwá, e o estava seguindo pelos caminhos do Òrún, esperando que ele cometesse algum deslize, o que de fato aconteceu. Odùduwà, encontrando-o naquele estado, apodera-se do Àpò-Iwá e leva-o até Olódùmarè, narrando o acontecido, e, por este fato, Olódùmarè delega a Odùduwà o poder de criar o Àiyé e por punição incumbe a Òrìsànlá de somente criar e modelar os corpos dos seres humanos no Òrún, sob sua supervisão e o proíbe terminantemente de nunca mais beber o emu. Odùduwà, então, cumpre a tradição e faz as obrigações, para se tornar o progenitor dos Yorubas, do Mundo : Olófin Odùduwà, o futuro Àjàlàiyé.

Desde então a relação tempestuosa entre Odùduwà e Obàtálá se perpetuou, ora em disputas, discórdias, controvérsias e de outras formas, mas sempre munindo a eterna rivalidade.

Odùduwà

Odùduwà chegando ao Àiyé, cria tudo o que era necessário e delega poderes às divindades que o seguiram, conhecidos como os Àgbà*, para governarem a criação, e volta ao Òrún, e só retornaria quando tudo estivesse realmente concluído. Òrìsànlá, que tinha ficado no Òrún com seus seguidores, já tinha moldado corpos suficientes para povoar o inicio do mundo, vai então para o Àiyé, com seus seguidores, os Funfun*; fato que ocorre antes da volta de Odùduwà para o Àiyé. *Anexos.

Quando Olófin Odùduwà retorna ao Àiyé, funda a cidade de Ilê-Ifé, e vem a ser o primeiro Oba (rei) do povo yorubano com o titulo de "Oba Óòni", ou seja, o primeiro Óòni de Ifé, e a cidade se torna a morada dos deuses e dos novos seres.

Durante todo este tempo, Odùduwà que já estava casado com Ìyá Olóòkun, divindade feminina, responsável e dona dos mares, tem dois filhos, o primogênito, a divindade Ògún e uma filha de nome Ìsèdélè. O tempo passa, e Odùduwà, que era uma divindade negra, porém albina, incumbe seu filho Ògún de ir para a aldeia de Ògòtún, vizinha de Ifé, conter uma rebelião.

Ògún, divindade negra, senhor do ferro, parte para sua missão e realiza o intento, trazendo consigo Lakanje, filha do rebelde vencido. Ora, Lakanje era espólio de Odùduwà, o Óòni de lfé, portanto intocável, mas Lakanje era muito bela e extremamente sensual e Ògún não resistiu aos seus encantos e com ela teve várias noites de amor, durante sua viagem de volta. Chegando a lfé, ele entrega os espólios da conquista, inclusive Lakanje, a seu pai Odùduwà, que também não resistiu aos lindos encantos da mortal Lakanje e por ela se apaixona e acabaram por casar-se. Ògún nada tinha contado a seu pai dos fatos ocorridos e logo após o casamento Lakanje está grávida, desta gravidez nasce um filho de nome Odéde.

Só que o destino foi fatídico, Odéde nasceu metade negro, como a pele de Ògún e metade branco, como a pele do albino Odùduwà, revelando assim, a traição de Ògún para com a confiança do seu pai, esta situação gerou muita discussão entre Odùduwà e Ògún, mas a principal foi "quem tinha razão", ou, quem teria mais "genes" no filho em comum, Odéde, e cada um se posicionava com a seguinte frase : "a minha palavra triunfou" ou "a minha palavra é a correta", que aglutinada é Òrànmíyàn e foi assim que ele passou a ser chamado e conhecido.

Com Lakanje, uma das muitas esposas de Odùduwà*, ou com outras, teve ou já tinha mais seis filhos, outros dizem dezesseis, uns, um número maior ainda, enfim, alguns dos filhos destas esposas, geraram as linhagens dos Obas Yorubanos, uns foram os precursores de sete das principais tribos, ou mais, que deram origem à civilização dos yorubas, e religiosamente falando, todos os povos do mundo. Os filhos, netos ou bisnetos de Odùduwà, os deuses, semideuses e/ou heróis, formaram a base da nação yoruba, portanto Olófin Odùduwà Àjàlàiyé é aclamado como "O Patriarca dos Yorubas". *Anexo

Obàtálá (Òrìsànlá) ,que também já estava no Àiyé com sua comitiva, mas devido a grande rivalidade com Odùduwà, foi expulso de Ilê-Ifé e funda a cidade de Ìgbò e se torna o primeiro Obà Ìgbò chamado também de Bàbá Ìgbò, pai dos ìgbòs. Numa sociedade polígama, Òrìsànlá é um caso raro de monogamia, pois a divindade Yemowo foi sua única esposa e não tiveram filhos.

Òrànmíyàn

Após grandes vitórias, Òrànmíyàn torna-se o braço direito de seu pai em Ilê-Ifê, pois seus outros irmãos foram povoar regiões distantes, menos Obàlùfan Ògbógbódirin. Odùduwà ordena então que Òrànmíyàn conquiste terras ao norte de Ifé, mas Òrànmíyàn não consegue cumprir a tarefa e sai derrotado e, com vergonha de encarar seu pai, não volta mais a Ifé, com isso funda uma nova cidade e lhe dá o nome de Oyó, tornando-se o primeiro Oba Aláàfin de Oyó.

Casado com Morèmi, uma bela mortal ,nativa de Òfà ,que se tornou mais tarde uma heroína em Ilê-Ifé, da qual tem um filho, que recebe o nome de Ajaká. Após algum tempo, Òrànmíyàn investe em novas conquistas e volta a guerrear contra a Nação dos Tapas, onde havia sido derrotado, mas desta vez consegue uma grande vitória sobre Elémpe, na época rei dos Tapas. Por sua derrota, Elémpe entrega-lhe sua filha Torosí, para que se case com ele. Retornando a Oyó, Òrànmíyàn casa-se com Torosí e com ela tem um filho, chamado de Sàngó, um mortal, nascido de uma mãe mortal e um pai semideus, portanto com ascendentes divinos por parte de pai.

Após este período com inúmeras vitórias, a cidade de Oyó torna-se um poderoso império, Òrànmíyàn, prestigiado e redimido de sua vergonha, volta para Ilê-Ifé, deixando em seu lugar, em Oyó, o príncipe coroado, seu filho Ajaká, que torna-se o segundo Aláàfin de Oyó.

Em uma de suas conquistas, a da cidade de Benin, anterior a fundação de Oyó, Òrànmíyàn termina com a dinastia de Ogìso, o então rei, expulsando-o e assumindo o trono, tornando-se o primeiro Obabínín, e inicia sua dinastia tendo um filho, chamado Èwékà, com uma mulher do local. Antes de deixar a cidade, ele torna Èwékà como seu sucessor no trono do Benin. (Atual cidade na Nigéria, antigo Reino do Benin, não confundir com a República do Benin, antigo país chamado Daomé.)

Durante sua longa ausência em Ilê-Ifé, Obàlùfan Ògbógbódirin ,seu irmão mais velho, se tornou o segundo Óòni de Ifé, após o reinado de Odùduwà. Quando Obàlùfan morreu, e ninguém sabia do paradeiro de Òrànmíyàn, o povo de Ifé aclamou Obàlùfan Aláyémore como sucessor direto de seu pai.

Quando Òrànmíyàn chega em Ifé, Obàlùfan Aláyémore já reinava como o terceiro Óòni de Ifé, mas com um fraco reinado. Enfurecido com o povo de Ifé que haviam aclamado Aláyémore, e que o tinham chamado para combater possíveis inimigos, o poderoso guerreiro colérico ,comete varias atrocidades e só para quando uma anciã grita desesperada que ele está destruindo seus "próprios filhos", o seu povo. Atônito, ele finca no chão seu asà (escudo) que imediatamente se transforma em uma enorme laje de pedra ,num lugar hoje chamado de "Ìta Alásà" ,e decide ir embora e nunca mais voltar à Ifé.

Quando rumava para fora dos arredores de Ifé ,em Mòpá, foi interceptado pelo povo que o saudavam como Óòni de Ifé e suplicavam por sua volta. Ele então satisfeito e envaidecido ,atende ao povo e finca no chão seu òpá (seu bastão de guerreiro) transformando-o em um monólito de granito (ver foto : Òpá Òrànmíyàn) selando assim o acordo com o povo e volta em uma procissão triunfante ao palácio de Ifé.

Sabendo disso, Obàlùfan Aláyémore abandona o palácio e se exila na cidade de Ìlárá. Òrànmíyàn ascende ao trono e se torna o 4ª Óòni de Ifé até sua morte. Obàlùfan Aláyémore, retorna do exílio e reassume como o 5ª Óòni de Ifé e reina deste vez, com sucesso até a sua morte.


Ajaká

O Aláàfin de Oyó, o Oba Ajaká, meio irmão de Sàngó, era muito pacifico, apático e não realizava um bom governo.

Sàngó, que cresceu nas terras dos Tapas ( Nupe), local de origem de Torosí, sua mãe, e mais tarde se instalou na cidade de Kòso, mesmo rejeitado pelo povo por ser violento e incontrolável, mas sendo tirânico, se aclamou como Oba Kòso. Mais tarde, com seus seguidores, se estabeleceu em Oyó, num bairro que recebeu o mesmo nome da cidade que viveu, Kòso e com isso manteve seu titulo de Oba Kòso. Sàngó percebendo a fraqueza de seu irmão e sendo astuto e ávido por poder, destrona Ajaká e torna-se o terceiro Aláàfin de Oyó.

Ajaká, também chamado de Dadá, exilado, sai de Oyó para reinar numa cidade menor, Igboho ,vizinha de Oyó, e não poderia mais usar a coroa real de Oyó. E, com vergonha por ter sido deposto, jura que neste seu reinado vai usar uma outra coroa (ade), que lhe cubra seus olhos envergonhados e que somente irá tira-la quando ele puder usar novamente o ade que lhe foi roubado. Esta coroa que Dadá Ajaká passa a usar, é rodeada por vários fios ornados de búzios no lugar das contas preciosas do Ade Real de Oyó, e esta chama-se Ade Bayánni (ver fotos). Dadá Ajaká então casa-se e tem um filho que chama-se Aganju, que vem a ser sobrinho de Sàngó.

Sàngó reina durante sete anos sobre Oyó e com intenso remorso das inúmeras atrocidades cometidas e com o povo revoltado, ele abandona o trono de Oyó e se refugia na terra natal de sua mãe em Tapa. Após um tempo, suicida-se, enforcando-se numa árvore chamada de àyòn (àyàn) na cidade de Kòso. Com o fato consumado, Dadá Ajaká volta à Oyó e reassume o trono, retira então o Ade Bayánni e passa a usar o Ade Aláàfin, tornando-se então o quarto Aláàfin de Oyó. Após sua morte, assume o trono seu filho Aganju, neto de Òrànmíyàn e sobrinho de Sàngó, tornando-se o quinto Aláàfin de Oyó.

Com Aganju, termina o primeiro período da formação dos povos yoruba e após seu reinado se dá inicio ao segundo período, o dos reis históricos. Vimos : "De Ifé até Oyó, de Odùduwà a Aganju, passando por Sàngó."


Sàngó

O que notamos nesse primeiro período yorubano, é que na realidade, o que se fala de Sàngó, e a sua história nos Candomblés do Brasil, e de outros acima descritos, é incorreto, levando os fiéis a crer em fatos irreais.

Inicialmente, averiguamos que Odùduwà é um Òrìsà funfun masculino e único, é o pai do povo yorubano e não uma simples "qualidade" de Òrìsànlá ou seja, são divindades totalmente distintas, inclusive, não se suportavam, pelos fatos vistos; e que também Ìyá Olóòkun, é um Òrìsà feminino e a Dona do Mar, portanto da água salgada, é quem governa os oceanos e não o Òrìsà Yemojá, "Senhora do rio Yemojá e do rio Ògùn", divindade de água doce, e muito menos mãe de Ògún e de outros filhos Òrìsà à ela atribuídos. Notar a acentuação diferente no nome do Òrìsà Ògún e do rio, pois são palavras distintas.

Quanto a Sàngó, demonstramos que foi um mortal em sua vida no Àiyé, portanto quando morreu, tornou-se um egún, pois seus pais eram mortais. O que ocorreu em sua vida, foi que uma de suas esposas, e a única que o acompanhou em sua fuga de Oyó, era a divindade Oya, loucamente apaixonada por ele, e no instante de sua morte ela o pega com o seu poder de Òrìsà e o conduz diretamente a Olódùmarè, e por insistência de Oya, Ele o "ressuscita" como uma divindade, já que em vida, Oya, perdida de amores, ensina-lhe vários segredos dos Òrìsà, principalmente o segredo do fogo que pertencia somente a Oya, que ela lhe ensina e lhe dá este poder e outros, por paixão.

Esta afirmação é facilmente notada, pois Sàngó é a única divindade do panteão que é assentada de forma material completamente diferente, isto é, em madeira, numa gamela sobre um pilão, sua roupa ritual é composta de várias tiras de panos, coloridas e soltas, caindo sobre as pernas, que lembra perfeitamente o tipo de roupa usada pelos Bàbá Egúngún (ancestrais) e seu animal preferido para sacrifício é também o mesmo dos egún, dos mortos comum, o carneiro; existe também outras minúcias, que aqui não cabe mencionar. Leia em artigos : O Culto dos Egúngún

Nos Candomblés, citam Ajaká e Aganju como sendo "qualidades" de Sàngó, que agora sabemos isto não é possível, pois, Ajaká é seu meio irmão e Aganju é filho de Dadá Ajaká, portanto seu sobrinho, notoriamente pessoas mortais e completamente distintas, que fazem parte da família de Sàngó, mas não tiveram a honra de tornarem-se Òrìsà, mas são ancestrais ilustres. Também no Brasil, faz-se uma cerimônia chamada de "Coroa de Dadá" ou "Adê Baiani". que a coroa é levada ritualmente em uma charola durante as festas do ciclo de Sàngó chamada de Banni ou lyamasse, que representa a mãe de Sàngó. Ora, sabemos que quem usou este ade foi, Ajaká, apelidado de Dadá, de quem Sàngó lhe roubou o trono, e que a mãe de Sàngó foi Torosí, filha de Elémpe, rei dos Tapa, e que ela não tem nenhuma importância teológica, somente histórica, por ter sido mãe de um Aláàfin.

Não estamos desmerecendo e nem tampouco desprestigiando o Òrìsà Sàngó, somente tentamos elucidar fatos notoriamente conhecidos na terra dos Yorubas, sob os aspectos histórico, através da tradição oral, e divino que se convergem e se conservam na grandiosidade de Sàngó.

NOTA* : Os mitos e/ou fatos relatados, são baseados em dados religiosos, por vezes dogmáticos, que pertencem ao corpo da tradição oral yorubana. Sob o ponto de vista cientifico, são considerados parcialmente históricos, pois não são dados comprovados por documentos e nem tampouco pela arqueologia, que pouco investiu, os "pouquíssimos" artefatos que foram achados e datados pelo carbono 14, são de datas recentes, perto da longínqua História da Civilização Yoruba. No contraponto, em nenhum momento afirmamos que não exista a História dos Yorubas, isto sim, seria um absurdo afirmar. A tradição oral pode ser contraditória e a cronologia praticamente inexistente, pela forma cultural dos yorubas mensurarem o tempo, mas jamais poderá ser negligenciada e nem tampouco rejeitada.

*Nota atual do autor para este site.


Aulo Barretti Filho

Junho de 1984

BIBLIOGRAFIA

Texto de Aulo Barretti Filho : "IIê-Ifé : o berço religioso dos yorubas , de Odùduwà a Sàngó" In : Revista Ébano, São Paulo ,nº 23 : 33 , Junho de 1984

(Fonte: http://aulobarretti.sites.uol.com.br/Artigos/Ile_Ife/Ife.htm)
(texto extraído de: http://oganvinicius.blogspot.com/) - vale a pena passar lá e dá uma conferida no blog.

A História dos Grandos Mestres (Vadinho)

Não poderia iniciar essa série de postagens sobre a história dos Grandes Ogans, se não fosse para discorrer sobre Vadinho.

Vadinho nasceu Euvaldo Freitas dos Santos, em Salvador. Há duas versões distintas sobre a origem da alcunha “Boca de Ferramenta”. Alguns afirmam que Vadinho recebeu esse apelido em função da sua profissão (Ferreiro - também foi Estivador). Outros, por outro lado, dizem que o apelido surgiu em função da formação da sua arcada dentária. Vadinho, era filho de Obaluwaiye, iniciado na religião dos Deuses Africanos, pela aclamada Ìyálòrìsà, Mãe Menininha do Gantois. Na casa de Candomblé do Alto da Federação, Vadinho era o Grande Maestro dos Òrìsàs!

De uma tradicional linhagem de músicos das sociedades de origem africana, Vadinho aprendeu e herdou a arte do Atabaque com seu pai Eduardo, também do Gantois. Desde Menino, foi integrante da chamada “Turma da Música”. Nesse aspecto, no livro sobre a bibliografia de Mãe Menininha, há uma foto antológica, na qual Vadinho, ainda criança está em pé (de calças curtas) ao lado do terno de Atabaques. Na foto, seu pai Eduardo (no livro consta com Edmar), está ao Hun.

Com sua arte incontestável, Vadinho fez história! Era dileto de Mãe Menininha, aliás, relatos da época deixam claro que a Ìyálòrìsà fazia questão que seu Candomblé fosse tocado com esmero. Talvez, seja essa a razão por ter sido na sua gestão, que despontou o maior número de virtuosos Ogans no Alto do Gantois.

Meu Tio Erenilton Bispo dos Santos, venerado Ogan de Salvador, Elemoso da Casa de Òsùmàrè e Amigo de Vadinho, comenta que: “Vadinho era um Ogan muito brincalhão, todos gostavam dele, adorava jogar dominó. Com o atabaque ele brincava! tocava como ninguém! Ele era a vedete do Gantois”. Diz, ainda que, por vezes, presenciou Vadinho chegar no término de alguma festa e, mesmo assim, os santos voltarem para receber o seu Hun (em muitas casas antigas, os Omo Òrìsà, não são acordados imediatamente após o seu Hun, as vezes ficam manifestados nas dependências internas das casas de Asè, por isso eles voltavam ao barracão).

A fama de Vadinho como virtuoso músico do Candomblé era tão grande, que extrapolou os limites dos Terreiros. Uma história narra que um grande percussionista de Salvador, diante dos comentários acerca de Vadinho, resolveu atestar, se de fato, ele era magnífico como discorriam. O percussionista em questão, pediu à Vadinho que tocasse, pois ele iria escrever tudo e depois, iria repetir, mostrando que não era tão impossível tocar como ele. Vadinho, prontamente atendeu ao pedido, tocando alguns ritmos dos Òrìsàs. Ao término, o famoso percussionista rendeu-se a Vadinho, pedindo-lhe que fosse também seu mestre, pois jamais havia escutado algo tão perfeito...

Vadinho deixou três grandes discípulos de sua arte musical, os três iniciados no Candomblé do Gantois. A saber: Gamo da Paz, Robson Costa Pinto e Gabi Guedes. Sobre o Grande Mestre, em conversas informais seus alunos me disseram:

Gamo da Paz, aclamado músico, fala que antes de começar o Candomblé, Mãe Menininha chamava Vadinho no quarto dela e dizia: “Vá começar o Candomblé”! Ele, então, entrava sozinho no barracão, e fazia no Hun um toque específico. Esse toque, era uma espécie de código, na verdade um comunicado aos demais Ogans da Música, que a festa iria começar, portanto, eles deveriam entrar no barracão. Gamo, diz também, que Vadinho tinha um jeito muito peculiar de afinar o Hun, ele batia com as próprias mãos nos birros do atabaque, numa seqüência única e, feito isso, os atabaques estavam afinados ao seu gosto.

Gabi Guedes, chamado de Agidavi de Ouro da Bahia, nos falou que Vadinho subia ao Hun no Sire, no início da festa e, saía quando os Òrìsàs entravam para serem vestidos. Nesse momento, no qual os santos que não iam vestir tomariam Hun, Vadinho deixava o salão, subindo desta feita ao atabaque, um de seus irmãos (Hélio ou Dudú, ambos virtuosos como ele). Vadinho voltava na saída dos Òrìsàs. Gabi, comenta ainda que, esse momento era mágico, pois Vadinho realmente tocava com amor para os Òrìsàs.

Robson, considerado o maior tocador de Hun de São Paulo, narra que a coisa mais difícil que existia era tocar Hunpi ou Lé, quando Vadinho estava ao Hun. Diz que nenhum Ogan conseguia tirar os olhos das mãos do Grande Maestro, fazendo com que, por vezes, o Hunpi e Lé, perdessem o tempo da “pancada”. Para Robson, Vadinho foi simplesmente o Gênio do Atabaque.

O Grande Vadinho perpetuou um pouco da sua arte em alguns discos e filme. O primeiro registro, data de 1962, no premiado filme Barra-Vento de Glauber Rocha, que além de Vadinho, conta com a participação de Mãe Hilda da França, então Ìyákekère do Gantois. Posteriormente, consta uma gravação primorosa, realizada no Ilé Omi Ase Iyamase. O Disco, chama-se “Documentos Sonoros Brasileiros – Candomblé”, nele, Vadinho novamente com Mãe Hilda da França, realizam uma gravação emocionante, que remete-nos aos Candomblés de outrora. Em 21 de Outubro de 1977, no Jardim do ICBA, foi lançado o mais conhecido disco de Vadinho (Candomblé, produzido por Djalma Correa). Esse disco, foi muito comentado à época. Por meio dele, muitos Ogans (inclusive eu), despertaram seu interesse pelo atabaque. No disco Baiafro de Djalma Correa (premiado com o troféu Villa-Lobos), há 4 faixas (os quatro elementos), que Vadinho e seu irmão Dudú, presenteia-nos com uma gravação perfeita dos toques “Agere”, “Alujá”, “Daró” e “Ijesa”. Outro disco que Vadinho mostra à que veio, refere-se ao Cinqüentenário de Mãe Menininha. Nessa gravação, eu diria que Vadinho chega a ser soberbo ao executar toques como Hamunya e Ageré. Outra importante gravação de Vadinho (somente voz, pois quem está ao Hun é seu irmão Dudú) é o disco Shiré Orishás Ede Yoruba.

Vadinho, participou como músico do “Viva Bahia”, “Baiafro” (Grupo de Djalma Correa) e do “Korin Nago”. Com esses grupos, viajou o mundo divulgando sua arte. Em uma dessas viagens deixou um atabaque com Tia Cabocla, mãe carnal de Mãe Luizinha de Nana, Ìyálasè do Ilé Alákétu Ase Airá. Esse atabaque, ficou por mais de 20 anos, aos cuidados de Mãe Luzinha, até que um dia, diante da minha admiração inconteste por esse Alagbe, ela me presenteou com esse instrumento único, o qual encontra-se hoje, em exposição no Ilé Alákétu Asè Ibùalámo (foto acima).

Foi também em uma dessas viagens, desta feita à Alemanha, em junho de 1979, que Vadinho partiu para o Orun. Meu tio Erenilton conta que ele, com o corpo muito quente em função da apresentação que fazia, saiu à rua, mas estava geando, ocasionando Choque Térmico. Assim, Vadinho deixou-nos, precocemente, de forma pueril. Conforme publicação do Jornal A Tarde, de 15/06/1979, em função da morte de Vadinho, o Gantois deixou de tocar a tradicional festa de Òsóòsì. Em Jun/79, o chamado “Busca Longe” (nome dado ao Hun do Gantois), silenciou ante a perda daquele que, mais que ninguém, soube por meio dele, evocar os Deuses Africanos à Terra.

Euvaldo Freitas Santos, o festejado Vadinho Boca de Ferramenta, foi único, foi virtuoso, foi e, ainda é, o maior maestro da música sacra do Candomblé. Muito provavelmente, ninguém jamais se igualará a ele, ninguém será tão próximo do atabaque como ele. Nesse aspecto, certa ocasião, seu aluno Gamo da Paz, me disse: “Vinicius, Vadinho e o atabaque eram um só, não havia diferença". Vadinho partiu, mas sua arte permanece viva, quer seja nas mãos daqueles que são seus seguidores, seja pelos primorosos registros que ele nos deixou e que comento abaixo.

Carlos Vinicius M. Santana 10/03/2010

Disco Candomblé:
A obra mais conhecida de Vadinho, produzido e idealizado por Djalma Correa. Nele, além de tocar o Hun, ele está fazendo a Voz (solo). Particularmente, recomendo a faixa Ogun, na qual Vadinho, dá uma aula de "slap" de Agidavi na madeira.

Shiré OrishásEde Yoruba:
Nesse disco, Vadinho somente canta. Quem está ao Hun, é seu irmão Dudú (que era canhoto). Embora fosse iniciado em uma casa de Angola, Dudú tocando Ketu, tinha o mesmo virtuosismo do irmão. Recomendo a faixa da cantiga "Arawara Tafa Rode", simplesmente Show.


Cinqüentenário de Mãe Menininha:
Nesse disco, Vadinho é soberbo ao executar os toques: Alujá, Ijesa, Agere, Hamunya e Igbin. Todas as faixas, sem exceção, são perfeitas. Àqueles que gostam de estudar, recomendo que prestem atenção ao Hunpi e Lé do toque Ijesa.

Candomblé: Documentos Sonoros Brasileiros:
Na minha opinião, o melhor disco de candomblé já gravado. Quem está cantando, é Mãe Hilda, então Ìyákekère do Gantois. Vadinho nesse registro, mostra a cadência pura do antigo Candomblé.

Baiafro: Nesse disco, há quatro faixas, chamadas "os quatro elementos", que o Grande Vadinho e seu irmão Dudú, mostram sua arte nos toques: Agere, Ijesa, Alujá e Daró. Novamente para quem gosta de estudar, vale a pena ouvir com atenção as variações do Agere e do Alujá, algumas bem distin tas dos demais discos de Vadinho.


Barra-Vento:
No filme de Glauber Rocha, que conta com a participação de atores como Antônio Pitanga, Vadinho é, novamente perfeito em sua apresentação (para os fanáticos, uma ótima notícia, esse filme foi reeditado, agora em DVD, compre o original, pois vale a pena). Nessa filmagem, que também conta com a participação de Mãe Hilda.

Akasá - A comida de todos os Orixás

(texto extraído da revista orixás ano. 1, núm. 4)

As definições mais elementares do acaçá dizem que se trata de uma pasta de milho branco ralado ou mopido, envolvida, ainda quente, em folhas de bananeira. A definição correta, mas extremamente superficial, pois o acaçá é de longe a comida mais importante do candomblé. seu preparo é forma de utilização nos rituais de oferenda. Envolvem preceitos e regulamentos bem rígidos, que nunca podem deixar de ser observados.
Todos os orixás, de Exú a Oxalá, recebem o acaçá. Todas as cerimônias, do ebó mais simples aos sacrifícios de animais, levam acaçá. em rituais de iniciação, de passagens fúnebres e tudo o mais que ocorra em uma casa de candomblé só acontece com a presença de acaçá. a vida e a morte no candomblé se processam à partir desta oferenda fundamental, sem a qual nenhum homem seria poupado dos dissabores e percalços do destino. Quando recorremos à história dos orixás, percebemos o grande mal que a humanidade se submete todas as vezes em que se afasta do poder divino, representado, nesse caso, pelo poderoso Orun, a morada de todas as divindades, e pelo deus supremo, senhor do destino dos homens, OLODUMARÉ, também conhecido como Olorun.
Certa vez, a terra foi acometida por uma terrível seca. Havia anos que não chovia, as mulheres estavam estéreis, o solo infértil, a fome, a doença, a morte assolavam a população. a iminência da destruição lecou os orixás a consultar Ifá, o deus de todos os otráculos, que revelou a necessidade de se fazer uma grande oferenda ao próprio Olodumaré, que há muito já não se ocupava dos problemas da terra nem dos homens. Conforme Transcrição do texto sagrado. Ifá disse aos orixás que:

" Somente se pudessem fazer oferenda, olodumaré teria sempre misericórdia deles. Ele se lembraria deles e zelaria pelo mundo. Foi assim que prepararam a oferenda. Foi assim que prepararam a oferenda. Eles colocaram: uma cabra, uma ovelha, um cachorro, uma galinha, um pombo, um preá, um peixe, um ser humano e um touro selvagem, um pássaro da floresta, um pássaro da savana, um animal doméstico..."

A lista de oferendas segue e noz faz supor que está indicando uma grandeza e não um conjunto de oferendas propriamente dito. em outros termos, era preciso ofertar algo a Olodumaré que pudesse representar todos os seres vivos da Terra, e nesse contexto insere-se o valor do simbólico. Os significados profundos de alguma coisa acabam evocando aquilo que por força das circunstâncias, ou mesmo por impossibilidadaes reais, é, abstraído. todavia, que a oferenda poderia substituir um sacrifício desta proporção, contendo, inclusive, um ser humano?
Só existe uma oferenda capaz de restituir o axé e devolver a paz e a prosperidade na Terra, e lea é justamente o acaçá. Mas o que faz de uma comida aparentemente tão simples a maior das oferendas aos orixás?
será que todos sabem o que realmente é um acaçá?
façamos então uma classificação dos elementos que compõem o acaçá para chegarmos á derradeira conclusão. Primeiramente, é preciso esclarecer que a pasta branca á base de farinha de milho( que fica alguns dias de molho e depois passada pelo pilão ou moinho) chama-se na verdade èkó. Depois de coxear, uma porção da pasta, ainda quente, é envolvida em um pedaço de folha de bananeira (ewé - èkó) para enrijecer (na África é usada outra folha, chamada èpàpo), tornando-se, agora sim, um acaçá.
Percebe-se a fundamental importância da folha de bananeira, uma vez que o èkó só passa a ser acaçá quando envolvido em uma folha verde que lhe atribui uma existência individualizada, pois passa a ser uma porção desprendida de massa, assim como o emi, que dá vida aos seres, é, na verdade, uma parte da atmosfera, ou do próprio Olorun, que todo ser leva para dentro de si, o sopro da vida, o ar que respiramos.
Portanto, o acaçá é um corpo, o simbolo de um ser. A única oferenda que restitui e redistribui o axé.
É importante insistir que o que faz do acaçá um corpo único, eminente representação de um ser, é a folha, seu poderoso invólucro verde, que lhe confere individualidade e força vital diante do poderoso Orun, dos orixás e do grande deus Olodumaré.
Somente a água é tão importante quanto o acaçá, pois não existem substitutos para nenhum dos dois, que são, a exemplo do obi, elementos indispensáveis em qualquer ritual. Ambos configura-se como símbolos da vida, e é justamente para afastar a morte do caminho das pessoas, para que o sacrifício não seja o homem, que são oferecidos.
O acaçá remete ao maior significado que a vida pode ter: a própria vida. E por ser o grande elemento apaziguador, que arranca a morte, a doença, a pobreza e outras mazelas do seio da vida, tornou-se a comida e predilação de todos os orixás.

O grande fundamento

Nem todas as palavras do mundo são sufucuentes para decifrar o valor de um acaçá. Basta admitir que os segredos estão nas coisas mais simples para ver que muitos julgaram insignificantes, a comida mais importante do candomblé, banalizando o sagrado e privilegiando a intuição em detrimento do fundamento.
fato é que quem não faz um bom acaçá não é um bom conhecedor do candomblé, pois as regras e diretrizes da religião dos orixás nunca foram ditadas pela intuição. constituem grandes fundamentos 'cristalizados' ao longo dos anos e anos de tradição. Aos incautos vale afirmar que candomblé não é intuição, mas fundamento sim, e fundamento se aprende.
Fundamento é o segredo compartilhado, o mistério sagrado, o detalhe que faz a diferença e a prova de que ninguém pode enganar o orixá. Aqui, o grande fundamento é que o sangue dos animais sacrificados já mais pode jorrar sobre os igbás sem a presença do elemento pacificador, pois o acaçá simboliza a paz. Quando ofertado e retirado do seu invólucro verde, tornardo-se a comida que agrada todos os orixás, a primeira oferenda que deve ser colocada diretamente no assentamento, juntamente com o obi e a água, antes de qualquer sacrifício.
Muitas vezes o sangue do animal não é colocada diretamente no igbá, a panela onde se faz o assentamento para o orixá. Primeiramente, no candomblé,o ejé(sangue) é batido, porque a 'quentura' do sangue, seu vermelho intenso, agride ou se choca a energia de orixás como Oxalá, por exemplo.
O acaçá deve permanecer fechado, imaculado até o momento de ser entregue ao orixá. Só então é retirado da folha. É como se osagrado tivesse de ficar oculto até a hora da oferenda, prova de que o segredo é quase sempre um elemento consagrado. E o segredo do acaçá é enrolar o èkó na folha da bananeira, é o que mantém um terreiro de candomblé de pé. não existe acaçá que não seja enrolado na folha de bananeira.
Entretanto, a imprudência vigora em muitos terreiros e não raras vezes se ouve falar de 'novas iguarias' apresentadas como acaçá. Os mais comuns são os 'acaçás de pia' e 'de forma'. No primeiro caso, a massa de Èkó, mais grossa, é colocada ás colheradas sobre os mármores das pias, onde os bolinhos esfriam antes de serem utilizados nos ritos. na segunda 'receita', a massa é espalhada em uma forma e posteriormente cortada em quadradinhos. Este é um procedimento incorreto e condenável, e as pessoas que agem assim estão fadadas ao insucesso e não podem ser consideradas pessoas de Axé.
Não há candomblé sem acaçá, nem acaçá sem folha. a religião dos orixás não admite modificações na sua essência, e esta comida é essencial, portanto, inviolável. Há sacerdotes que oferecem até bois em sacrifício a seus orixás e acabam se esuqcendo de que o acaçá traduz o saber, e de nada adianta o boi sem acaçá.
Primeiro vem o acaçá, antes dele só a vida. Logo, a folha de bananeira guarda uma vida. Deixar o èkó exposto é o mesmo que deixar a vida vulnerável. Eis o grande fundamento.]Que se arrependam, pois, os que menosprezaram o maior entre todos os fundamentos do candomblé, lastimem para sempre esta imprudência e reconheçam que seu insucesso é decorrência de sua ignorância. Saibam agora que nos lugares mais óbvios se escondem os maiores segredos. Jamais banalizem o sagrado, porque o ritual admite alterações na forma, mas nunca na essência. No mundo de hoje não há lugar para o despreparo, portanto, quem não souber fazer um acaçá que saia do candomblé.
Na Bahia não há quem não conheça, imprescindível nos rituais de candomblé, mas também muito apreciado como acompanhamento de comidas de azeite. prato predileto de Oxalá e de todos os orixás é também o mais poderoso ebó, único que arranca a morte do seio da vida.
manter-se imaculado até o momento da oferenda é o que garante a eficácia do acaçá, portanto a folha de bananeira (e no Brasil nenhuma outra pode substituí-la) é fundamental e prova, acima de tudo, o quanto um Babalorixá ou Iyalorixá são conhecedores da religião que professam. os grandes sacerdotes de candomblé, conhecidos por sua seriedade, saber e sucesso, enrolam o Èkó na folha, sabem fazer acaçá. Este é o segredo!

O Candomblé

Tópicos Relacionados a Nossa religião.




(texto extraído da revista Super Interessante, edição 88 - jan. 95)

Candomblé
O que é o candomblé, como se prepara a festa, quem são os orixás, como funciona um terreiro, os rituais de iniciação, a sabedoria dos búzios e sua origem e misturas.
Os navios negreiros que chegaram entre os séculos XVI e XIX traziam mais do que africanos para trabalhar como escravos no Brasil Colônia. Em seus porões, viajava também uma religião estranha aos portugueses. Considerada feitiçaria pelos colonizadores, ela se transformou, pouco mais de um século depois da abolição da escravatura, numa das religiões mais populares do país.




Por Sílvia Campolim




Quem gosta de cachaça é Exu. Quem veste branco é Oxalá. Quem recebe oferendas em alguidares (vasos de cerâmica) são orixás. E quem adora os orixás são milhões de brasileiros. O candomblé, com seus batuques e danças, é uma festa. Com suas divindades geniosas, é a religião afro-brasileira mais influente do país.

Não existem estatísticas que dêem o número exato de fiéis. Os dados variam. Segundo o Suplemento sobre Participação Político-Social da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 1988, 0,6% dos chefes de família (ou cônjuges) seguiam cultos afrobrasileiros. Um levantamento do Instituto Gallup de Opinião Pública, no mesmo ano, indicou que candomblé ou umbanda era a religião de 1,5% da população.

São índices ridículos se comparados à multidão que lota as praias na passagem de ano, para homenagear Iemanjá, a orixá (deusa) dos mares e oceanos. Elisa Callaux, gerente de pesquisa do IBGE, explica por que, tradicionalmente, os índices dos institutos não refletem exatamente a realidade: Os próprios fiéis evitam assumir, por medo do preconceito. Ela tem razão. A mais célebre mãe-de-santo do Brasil, Menininha do Gantois, falecida em 1986, declarou certa vez ao pesquisador do IBGE que era católica. Apostólica romana.

De seu lado, a Federação Nacional de Tradição e Cultura Afro-Brasileira (Fenatrab) desafia ostensivamente as cifras oficiais e garante haver 70 milhões de brasileiros, direta ou indiretamente, ligados aos terreiros seja como praticantes assíduos, seja como clientes, que ocasionalmente pedem uma bênção ou um serviço ao mundo sobrenatural.

Você pode achar um exagero, e talvez seja mesmo, mas terreiro é o que não falta. Em 1980, num convênio da Prefeitura de Salvador com a Fundação Pró-Memória, o antropólogo Ordep Serra, da Universidade Federal da Bahia, concluiu um mapeamento dos terreiros existentes na região metropolitana de Salvador. Eram 1 200. Hoje são muitos mais, assegura Serra.

Mais recentemente, o Instituto de Estudos da Religião (ISER) verificou que 81 novos centros espíritas (englobando cultos afro-brasileiros e kardecismo) haviam sido abertos no Grande Rio de Janeiro no ano de 1991, e que, em 1992, surgiram outros 83. O sociólogo Reginaldo Prandi, da Universidade de São Paulo, contou, em 1984, 19 500 terreiros registrados nos cartórios da capital paulista.

Onde tem terreiro, tem festa. Por isso, para levar você ao mundo do candomblé, SUPER começa por convidá-lo para uma festa no terreiro. Agora, você conhecerá em detalhes um dos fenômenos mais impressionantes da civilização brasileira.




Para saber mais:

A cara de Zumbi

(SUPER número 11, ano 9)




O barracão está pronto: a festa vai começar




São nove horas da noite. Os tocadores de atabaque, chamados alabês, estão a postos em seus lugares. O público cerca de 40 pessoas aguarda em silêncio, acomodado em bancos rústicos de madeira. Os homens, na fileira à direita da porta. As mulheres, do lado esquerdo. Separados, para evitar um eventual namoro. Afinal, ali não é lugar para isso. Estamos num templo do candomblé, a Casa Branca, em Salvador, Bahia, o pioneiro do Brasil, fundado em 1830.A festa (que pode ser comparada a uma missa católica) vai homenagear Xangô, o deus do fogo e do trovão.

O barracão foi decorado durante toda a tarde. O teto de telha-vã foi escondido por bandeirolas brancas e vermelhas as cores de Xangô. As paredes estão enfeitadas de flores e folhas de palmeira de dendê desfiadas. Vai começar o toque, como é chamada a festa de candomblé no Brasil. Ela é aberta a todos os orixás (deuses, que também podem ser chamados de santos) que quiserem homenagear Xangô.

O que o público vai assistir é parte de um ritual que começou horas antes. Na madrugada, os filhos-de-santo fizeram o sacrifício para o orixá homenageado. Nas primeiras horas da manhã, as filhas-de-santo prepararam a comida. Durante a tarde, foi feita a oferenda aos deuses, e Exu, o mensageiro entre os homens e os orixás, foi despachado. Entenda melhor essa preparação













O calendário litúrgico




Muitas festas não têm dia certo para acontecer.

As festas normalmente estão

associadas aos dias santos do catolicismo. Mas as datas podem variar de terreiro para terreiro, de acordo com a disponibilidade e as possibilidades da comunidade.

De maneira geral, o que importa é comemorar o orixá na sua época.

As principais festas, ao longo do ano, são as seguintes:




Abril: Feijoada de Ogum e

festa de Oxóssi (associado a

São Sebastião), em qualquer dia.

Junho: Fogueiras de Xangô

(associados a São João e

São Pedro), dias 25 e 29.

Agosto: Festa para Obaluaiê

(associado a São Lázaro e São Roque) e festa de Oxumaré (associado a

São Bartolomeu), em qualquer dia.

Setembro: Começa um ciclo de festas chamado Águas de Oxalá, que pode seguir até dezembro. Festa de Erê, em homenagem aos espíritos infantis

(associados a São Cosme e Damião). Festa das iabás (esposas de orixás)

e festa de Xangô (associado a São Jerônimo), em qualquer dia.

Dezembro: Festas das iabás Iansã (Santa Bárbara), dia 4, Oxum e Iemanjá (associadas a Nossa Senhora da Conceição), dia 8. Iemanjá também é homenageada na passagem de ano.

Janeiro: Festa de Oxalá (coincide com a festa do Bonfim, em Salvador), no segundo domingo depois do dia de Reis, 6 de janeiro.

Quaresma: O encerramento do ano litúrgico acontece durante os quarenta dias que antecedem a Páscoa, com o Lorogun, em homenagem a Oxalá.







Ao som dos atabaques, o santo baixa




Fotografar uma festa de candomblé não é tão fácil. Na Casa Branca, é absolutamente proibido. Mas outros terreiros, como o Ilê Axé Ajagonã Obá-Olá Fadaká, em Cotia, região da grande São Paulo, são mais liberais. Nesta casa, podemos bater fotos da cerimônia em homenagem a Xangô. Mas com uma ressalva: a de jamais fotografar de frente um filho-de-santo com o orixá incorporado.

A casa está cheia: 85 pessoas lotam o barracão. Os atabaques começam a falar com os deuses. Os orixás são invocados com cantigas próprias e os filhos-de-santo entram na roda, um a um, na chamada ordem do xirê: primeiro, o filho de Ogum, seguido pelos filhos de Oxóssi, Obaluaiê e assim por diante.

Ao som do canto e da batida dos atabaques, cada integrante da roda entra em transe. O corpo estremece em convulsão, às vezes suavemente, outras vezes com violência. Agora, os filhos incorporam os orixás e dançam até que o pai-de-santo autorize, com um aceno, sua saída, para serem arrumados pelas camareiras, chamadas equedes. Logo depois, eles voltam ao barracão, vestindo roupas, colares e enfeites típicos de seu santo. Ao ouvir seu cântico, cada um começa a dançar sozinho uma coreografia que conta a origem do orixá incorporado.

É quase meia-noite quando os atabaques tocam as cantigas de Oxalá, o criador dos homens. Saudado Oxalá, é hora da comunhão com os deuses: os pratos são servidos aos participantes da festa. O xirê chega ao fim.







Sem música, não existe cerimônia




Tudo acontece sob a batida de três atabaques




Os três atabaques que fazem soar o toque durante o ritual também são responsáveis pela convocação dos deuses.

O rum funciona como solista, marcando os passos da dança. Os outros dois, o rumpi e o lé, reforçam a marcação, reproduzindo as modulações da língua africana iorubá uma língua cantada, como o sotaque baiano. Além dos atabaques, usam-se também o agogô e o xequerê.

São, ao todo, mais de quinze ritmos diferentes. Cada casa-de-santo tem até 500 cânticos. Segundo a fé dos praticantes, os versos e as frases rítmicas, repetidos incansavelmente, têm o poder de captar o mundo sobrenatural. Essa música sagrada só sai dos terreiros na época do carnaval, levada por grupos e blocos de rua, principalmente em Salvador, como Olodum ou Filhos de Gandhi .







As divindades têm defeitos humanos




Em qualquer terreiro, a entrada dos orixás na festa segue sempre a mesma seqüência da ordem do xirê. Depois de despachar Exu, o primeiro a entrar na roda é Ogum, seguido de Oxóssi, Oba- luaiê, Ossaim, Oxumaré, Xangô, Oxum, Iansã, Nanã, Iemanjá e Oxalá.

Segundo a tradição, os deuses do candomblé têm origem nos ancestrais dos clãs africanos, divinizados há mais de 5 000 anos. Acredita-se que tenham sido homens e mulheres capazes de manipular as forças da natureza, ou que trouxeram para o grupo os conhecimentos básicos para a sobrevivência, como a caça, o plantio, o uso de ervas na cura de doenças e a fabricação de ferramentas.

Os orixás estão longe de se parecer com os santos cristãos. Ao contrário, as divindades do candomblé têm características muito humanas: são vaidosos, temperamentais, briguentos, fortes, maternais ou ciumentos. Enfim, têm personalidade própria. Cada traço da personalidade é asso-ciado a um elemento da natureza e da sua cultura: o fogo, o ar, a água, a terra, as florestas e os instrumentos de ferro.

Na África Ocidental, existem mais de 200 orixás. Mas, na vinda dos escravos para o Brasil, grande parte dessa tradição se perdeu. Hoje, o número de orixás conhecidos no país está reduzido a dezesseis. E, mesmo desse pequeno grupo, apenas doze são ainda cultuados: os outros quatro Obá, Logunedé, Ewa e Irôco raramente se manifestam nas festas e rituais.







Deuses e homens sob

o mesmo teto




O terreiro, ou casa-de-santo, é simultaneamente templo e morada. A vida cotidiana dos mortais mistura-se com os rituais dos orixás. A família-de-santo (a mãe ou o pai e os filhos-de-santo, não necessariamente parentes de sangue) divide os cômodos com os deuses.

A divisão do espaço, na Casa Branca, em Salvador, lembra os compounds africanos, ou egbes antigas habitações coletivas dos clãs, usadas principalmente pelos povos de língua iorubá. O cômodo principal é o barracão, o salão onde humanos e santos se encontram nas festas.

Por trás do barracão, há várias instalações comuns a uma residência: salas de jantar e de estar, cozinha e quartos nem todos destinados aos mortais. Há os quartos-de-santo, onde ficam os pejis (altares) e os assentamentos (objetos e símbolos) dos orixás. Aí são feitas as oferendas. Na Casa Branca, os dois únicos orixás que têm quartos dentro da casa são Xangô e Oxalá.

O roncó é um quarto especial onde os abiãs (noviços) ficam recolhidos durante o processo de iniciação. Essa proximidade dos abiãs com os outros membros do terreiro é fundamental: é assim que os iniciados entram em contato com os procedimentos rituais da casa. O fiel do candomblé aprende com os olhos e os ouvidos. Ele deve prestar atenção a tudo e não perguntar nada.

Os terreiros têm também uma área externa, onde estão as casas dos outros orixás. A de Exu, por exemplo, fica perto da porta de entrada.







Sucessão: guerra à vista

A sucessão numa casa-de-santo é sempre tumultuada: basta o pai-de-santo morrer para ter início uma verdadeira guerra entre orixás. Os filhos que não concordam com a indicação dos búzios costumam abandonar o terreiro e fundar sua própria casa. Foi assim que nasceu, no início do século, o Gantois uma das casas mais conhecidas em Salvador. A partir da década de 70, mãe Menininha do Gantois se tornou conhecida no Brasil inteiro, cantada por compositores, como Dorival Caymmi e Caetano Veloso, e venerada por intelectuais, como Jorge Amado. Mãe Menininha morreu aos 92 anos de idade, em 1986. Deixou em seu lugar mãe Creusa.







Por meses, o noviço só come com as mãos




Os filhos-de-santo são os sacerdotes dos orixás, da mesma forma como, na Igreja Católica, os padres são os representantes de Deus. Nem todos, porém, são preparados para receber os santos. Existem os que cuidam dos filhos-de-santo quando os orixás baixam, os que sacrificam os animais, os que tocam os atabaques e os que preparam a comida. Os búzios, usados como instrumento de adivinhação, é que vão dizer qual a função de cada um.

A entrada para essa hierarquia é a indicação do orixá. É o que se chama bolar no santo. A partir daí, o abiã (noviço) tem de se submeter aos rituais de iniciação cerimônias do bori, orô e saídas de iaô.

Um recém-iniciado passa de um a seis meses vivendo dentro de severas restrições. É o tempo de quelê o período em que o abiã usa um colar de contas justo ao pescoço. Enquanto usar o quelê, ele deve vestir branco, comer com as mãos e sentar-se só no chão. Estão proibidas as relações sexuais e os pratos que não sejam os de seu orixá.

Nem todos os terreiros seguem à risca todas as imposições. Mas pelo menos algumas têm de ser obedecidas: é parte do compromisso do abiã com seu orixá e seu pai ou mãe-de-santo. As obrigações não terminam por aí: o iniciado, que agora se chama iaô, terá de cumprir ainda três rituais depois de um ano, três anos e sete anos , com sacrifícios, toques e oferendas. Só depois ele pode se candidatar a ebômi, o degrau seguinte da hierarquia.










A sabedoria da morte e da advinhação

Como toda religião , o candomblé tem sua maneira própria de encarar a morte. Segundo a crença, a alma vive no Orum, que corresponde, mais ou menos, ao céu dos católicos. Ela é imortal e faz várias passagens do Orum para a vida terrena. Cada um tem controle sobre essas viagens: quem tem uma boa experiência em vida, pode escolher um destino melhor, na vinda seguinte.

Aqui na Terra, nada que se refira aos deuses e ao futuro pode ser dito sem a consulta ao Ifá, ou seja o jogo de búzios, conchas usadas como oráculo. O Ifá revela o orixá de cada um e orienta na solução de problemas.

O jogo usa dois caminhos: a aritmética e a intuição. Pela aritmética, é contado o número de conchas, abertas ou fechadas, combinadas duas a duas. Para interpretar todas as combinações possíveis dos bú- zios, o pai-de-santo conhece de cor 256 lendas que traduzem as mensagens dos deuses. Isso não é nada raro no candomblé, onde nada é escrito. Toda a sabedoria é transmitida oralmente.

No outro sistema de adivinhação, o intuitivo, o pai-de-santo estuda a posição dos búzios em relação a outros elementos na mesa, como uma moeda ou um copo d'água. Se o búzio cai perto da moeda, por exemplo, pode indicar que não há problemas com dinheiro. Mas é preciso estar preparado: os orixás vão cobrar pela consulta uma obrigação. Mãe Kutu, que foi formada pela Casa Branca e está montando seu próprio terreiro, diz: Se não vai fazer a obrigação, é melhor nem perguntar aos búzios.







Reza para o santo católico e vela para o orixá




Existem diferentes tipos de candomblé no Brasil, cada um deles saído de uma nação. A palavra nação aqui não tem nada a ver com o conceito político e geográfico, mas com os grupos étnicos daqueles que foram trazidos da África como escravos. As diferenças aparecem principalmente na maneira de tocar os atabaques, na língua do culto e no nome dos orixás.

Os povos que mais influenciaram os quatro tipos de candomblé praticados no Brasil são os da língua iorubá. Os rituais da Casa Branca, em Salvador, e da casa de Cotia, em São Paulo, descritos nesta reportagem, pertencem ao tipo Queto.

A mistura com o catolicismo foi uma questão de sobrevivência. Para os colonizadores portugueses, as danças e os ri- tuais africanos eram pura feitiçaria e deviam ser reprimidos. A saída, para os escravos, era rezar para um santo e acender a vela para um orixá. Foi assim que os santos católicos pegaram carona com os deuses africanos e passaram a ser associados a eles. A partir da década de 20, o espiritismo também entrou nos terreiros, criando a umbanda, com características bem diferentes.

Assim, o candomblé já se incorporou à alma brasileira. Tanto é que o país inteiro conhece o grito de felicidade a sau-dação mágica que significa, em iorubá, energia vital e sagrada: Axé!










Da África ao Brasil, uma boa mistura




A principal diferença entre os vários tipos de candomblé é a origem étnica.




Há quatro tipos de candomblé:

o Queto, da Bahia, o Xangô, de Pernambuco, o Batuque, do Rio Grande do Sul, e o Angola, da Bahia e São Paulo. O Queto chegou com os povos nagôs, que falam a língua iorubá (em

vermelho, no mapa). Saídos das regiões que hoje correspondem ao Sudão, Nigéria e Benin, eles vieram para o Nordeste. Os bantos saíram das regiões de Moçambique, Angola e Congo para Minas Gerais, Goiás, Rio de Janeiro e São Paulo (em amarelo, no mapa). Criaram o culto ao caboclo, representante das entidades da mata.







Candomblé não é umbanda




As duas são religiões afro-brasileiras.

Umbanda é a mistura do candomblé com espiritismo




Candomblé




Deuses: Orixás de origem africana. Nenhum santo é superior ou inferior a outro. Não existe o Bem e o Mal, isoladamente.




Culto: Louvação aos orixás que incorporam nos fiéis, para

fortalecer o axé (energia vital) que protege o terreiro e seus membros.




Iniciação: Condição essencial para participar do culto. O recolhimento dura de sete a 21 dias. O ritual envolve o sacrifício de animais,

a oferenda de alimentos e a

obediência a rígidos preceitos.




Música: Cânticos em língua africana, acompanhados por

três atabaques tocados por

iniciados do sexo masculino.




Umbanda




Deuses: As entidades são

agrupadas em hierarquia, que vai dos espíritos mais baixos (maus)

aos mais evoluídos (bons).




Culto: Desenvolvimento

espiritual dos médiuns que,

quando incorporam, dão

passes e consultas.




Iniciação: Não é necessária.

O recolhimento é de apenas

um ou dois dias. O sacrifício

de animais não é obrigatório.

O batismo é feito com água

do mar ou de cachoeira.

Música: Cânticos em português, acompanhados por palmas e atabaques, tocados por fiéis

de qualquer sexo.







Quem é quem (e quem faz o quê) na hierarquia de uma casa-de-santo




Cada iniciado tem uma função dentro

do terreiro. Nem todos recebem santo.




Abiã

Noviço, primeiro degrau da

hierarquia. Após iniciado, será filho-de-santo.




Iaô

Filho-de-santo,

segundo degrau na hierarquia. Podem ou não receber santo.




Ebômi

Terceiro degrau. Iaô que cumpriu as obrigações de sete anos. Recebe santo.




Iabassê

Quarto degrau. Não recebe. É a responsável pela cozinha do

terreiro.




Agibonã

Mãe criadeira. Também quarto degrau. Cuida dos iaôs durante o ritual de iniciação. Não recebe santo.




Ialaxé

Quinto degrau. Zela pelas oferendas e objetos de culto

aos orixás. Não

recebe santo.




Baba-quequerê

e Iaquequerê

Sexto degrau. Pai ou mãe-pequena. Recebe. Ajuda o pai ou mãe-de-santo no

comando do terreiro.




Baba-lorixá e

Ialorixá

Pai ou mãe-de-santo, chefe do terreiro, último degrau

da hierarquia. Recebe santo e joga búzios.




Ajudantes

sagrados




Pais e mães terrenos dos orixás ficam fora da hierarquia.




Ogã

Filho-de-santo que não recebe.

O Ogã pode ser Axogum ou Alabê, conforme sua tarefa.




Axogum

Ogã responsável

pelo sacrifício de

animais a serem

ofertados aos orixás. Não recebe santo.




Alabê

Ogã tocador dos atabaques e instrumentos

rituais. Não recebe santo.




Equede

Paralela ao Ogã.

Não recebe.

Cuida dos orixás incorporados e de seus objetos.







As diversas fases da iniciação




Primeiro, o santo indica a pessoa a ser iniciada.

Depois, é preciso cumprir outros três passos:




Bolar no santo

É o mesmo que cair no santo. Este é o sinal que indica a necessidade de iniciação de uma pessoa no candomblé. Acontece sem previsão, normalmente numa festa: durante a dança e os cânticos o orixá se manifesta no futurofilho-de-santo, que é agitado por tremores e sobressaltos violentos. Quem já bolou conta que sentiu arrepios, calor, fraqueza e sensação de desmaio. Quando acorda no roncó (o quarto do terreiro reservado à pessoa que bolou), o abiã não consegue se lembrar de nada do que aconteceu.




O bori

É a cerimônia que reforça a ligação entre o orixá e o iniciado. O abiã se senta numa esteira, rodeado de alimentos secos, aves, velas e objetos de seu orixá. Ajudado pelos filhos já feitos, o pai ou a mãe-de-santo sacrifica aves. O sangue é usado para marcar o corpo do noviço e para banhar as oferendas ao orixá.

A cerimônia só termina quando as aves são servidas aos membros da família-de-santo. Depois do bori, o futuro filho-de-santo passa a assistir às cerimônias e a preparar o enxoval (a roupa e os adereços de seu orixá) para terminar a iniciação, com as saídas de iaô.




Orô

Confinado ao quarto de recolhimento (roncó), por 21 dias, o noviço conhece a hierarquia da casa, os preceitos, as orações, os cânticos, a dança de seu orixá, os mitos e suas obrigações. Durante esse tempo ele toma infusões de ervas, que o deixam num estado de entorpecimento e abrem espaço na sua mente para o orixá. A cabeça é raspada e o crânio marcado com navalha: é por esses cortes que o orixá vai entrar, quando for incorporado. No final, o iniciado é batizado com sangue de um animal quadrúpede, sacrificado.

Os iaôs são apresentados à comunidade, como num baile de debutante

Na primeira saída, os iaôs vestem branco em homenagem a Oxalá, pai de todos. Saúdam o pai-de-santo, os atabaques e os pontos principais do barracão e vão-se embora. Na segunda saída, os iaôs voltam com roupas coloridas e a cabeça pintada, segundo seus orixás. Dançam e deixam o barracão, em seguida.

Na terceira saída, os orixás anunciam oficialmente seus nomes. Os iaôs entram em transe e se retiram para vestir as roupas do santo incorporado.










Os doze orixás mais cultuados no Brasil




Cada um deles tem o seu símbolo, o seu dia da semana, suas vestimentas e cores próprias. Como os homens, são temperamentais




Exu

Orixá mensageiro entre os homens e os deuses, guardião da porta da rua e das encruzilhadas. Só através dele é possível invocar os orixás. Elemento: fogo

Personalidade: atrevido e agressivo

Símbolo: ogó (um bastão adornado com cabaças e búzios)

Dia da semana: segunda-feira

Colar: vermelho e preto

Roupa: vermelha e preta

Sacrifício: bode e galo preto

Oferendas: farofa com dendê, feijão, inhame, água,mel e aguardente




Ogum

Deus da guerra, do fogo e da tecnologia. No Brasil é conhecido como deus guerreiro. Sabe trabalhar com metal e, sem sua proteção, o trabalho não pode ser proveitoso.

Elemento: ferro

Símbolo: espada

Personalidade: impaciente e obstinado

Dia da semana: terça-feira

Colar: azul-marinho

Roupa: azul, verde escuro, vermelho ou amarelo

Sacrifício: galo e bode avermelhados

Oferendas: feijoada, xinxim, inhame




Oxóssi

Deus da caça. É o grande patrono do candomblé brasileiro.

Elemento: florestas Personalidade: intuitivo e

emotivo

Símbolo: rabo de cavalo e chifre de boi

Dia da semana:

quinta-feira

Colar: azul claro

Roupa: azul ou verde claro

Sacrifício: galo e bode

avermelhados e porco

Oferendas: milho branco e amarelo, peixe de escamas, arroz, feijão e abóbora




Obaluaiê

Deus da peste, das doenças da pele e, atualmente, da AIDS. É o médico dos pobres.

Elemento: terra

Personalidade:

tímido e vingativo

Símbolo: xaxará (feixe de palha e búzios)

Dia da semana: segunda-feira

Colar: preto e vermelho, ou vermelho, branco e preto

Roupa: vermelha e preta, coberta por palha

Sacrifício: galo, pato,bode e porco

Oferendas: pipoca, feijão preto, farofa e milho, com muito dendê




Oxum

Deusa das águas doces (rios, fontes

e lagos). É também deusa do ouro, da fecundidade,

do jogo de búzios e

do amor.

Elemento: água

Personalidade: maternal

e tranqüila

Símbolo: abebê (leque espelhado)

Dia da semana: sábado

Colar: amarelo ouro

Roupa: amarelo ouro

Sacrifício: cabra, galinha, pomba

Oferendas: milho branco,

xinxim de galinha, ovos,

peixes de água doce







Iansã

Deusa dos ventos e das tempestades.

É a senhora

dos raios e dona

da alma dos

mortos.

Elemento: fogo

Personalidade:

impulsiva e imprevisível

Símbolo: espada e rabo de

cavalo (representando a realeza)

Dia da semana: quarta-feira

Colar: vermelho ou

marrom escuro

Roupa: vermelha

Sacrifício: cabra e galinha

Oferendas: milho branco,

arroz, feijão e acarajé




Ossaim

Deus das folhas e ervas medicinais. Conhece seus usos e as palavras mágicas (ofós) que despertam seus poderes.

Elemento: matas

Personalidade: instável e emotivo

Símbolo: lança com

pássaros na forma de leque

e feixe de folhas

Dia da semana: quinta-feira

Colar: branco rajado de verde

Roupa: branco e verde claro

Sacrifício: galo e carneiro

Oferendas: feijão, arroz,

milho vermelho e farofa

de dendê




Nanã

Deusa da lama

e do fundo dos

rios, associada à

fertilidade, à doença

e à morte. É a orixá mais velha de todos e, por isso,

muito respeitada.

Elemento: terra

Personalidade: vingativa

e mascarada

Símbolo: ibiri (cetro de palha

e búzios)

Dia da semana: sábado

Colar: branco, azul e vermelho

Roupa: branca e azul

Sacrifício: cabra e galinha

Oferendas: milho branco,

arroz, feijão, mel e dendê




Oxumaré

Deus da chuva e do arco-íris. É, ao mesmo tempo, de natureza masculina e feminina. Transporta a água entre o céu e a terra.

Elemento: água

Personalidade: sensível e tranqüilo

Símbolo: cobra de metal

Dia da semana: quinta-feira

Colar: amarelo e verde

Roupa: azul claro e verde claro

Sacrifício: bode, galo e tatu

Oferendas: milho branco, acarajé, coco, mel, inhame e feijão com ovos




Iemanjá

Considerada deusa dos mares e oceanos. É a mãe de todos os orixás e representada com seios volumosos, simbolizando a maternidade e a fecundidade.

Elemento: água

Personalidade: maternal e tranqüila

Símbolo: leque e espada

Dia da semana: sábado

Colar: transparente,

verde ou azul claro

Roupa: branco e azul

Sacrifício: porco, cabra e galinha

Oferendas: peixes do mar, arroz,

milho, camarão com coco




Xangô

Deus do fogo e do trovão. Diz a tradição que foi rei de Oyó, cidade da Nigéria. É viril, violento e justiceiro. Castiga os mentirosos e protege advogados e juízes.

Elemento: fogo

Personalidade:

atrevido e prepotente

Símbolo: machado

duplo (oxé)

Dia da semana: quarta-feira

Colar: branco e vermelho

Roupa: branca e vermelha, com coroa de latão

Sacrifício: galo, pato, carneiro e cágado

Oferendas: amalá (quiabo com

camarão seco e dendê)




Oxalá

Deus da criação. É o orixá que criou os homens. Obstinado e independente, é representado de duas maneiras: Oxaguiã, jovem, e Oxalufã, velho.

Elemento: ar

Personalidade: equilibrado e tolerante

Símbolo: oparoxó (cajado de alumínio

com adornos)

Dia da semana: sexta-feira

Colar: branco

Roupa: branca

Sacrifício: cabra, galinha,

pomba, pata e caracol

Oferendas: arroz, milho branco e massa de inhame










O toque

É o mesmo que festa e se refere à batida dos atabaques, que convoca os orixás. A estrutura da cerimônia, chamada ordem do xirê (brincadeira, na língua iorubá), divide a festa em três partes. A primeira acontece à tarde, com o sacrifício, a oferenda e o padê de Exu. A segunda é a festa em si, à noite, na presença do público, quando os filhos-de-santo incorporam os orixás. E a terceira fase, o encerramento, com a roda de Oxalá, o deus criador do homem.




O sacrifício

Acontece apenas diante dos membros da comunidade de santo e envolve no mínimo dois animais: um, de duas patas, para Exu, e outro, de quatro patas, macho ou fêmea, dependendo do sexo do orixá a ser homenageado. Quem realiza o sacrifício é o ogã axogum, um iniciado no candomblé

especialmente preparado para isso. Os bichos são mortos com um golpe na nuca. Depois, a cabeça e os membros são cortados fora e o animal sacrificado vai sangrar até a última gota antes de ser destinado à oferenda.




A oferenda

Depois do sacrifício, a moela, o fígado, o coração, os pés, as asas e a cabeça são separados e oferecidos ao orixá homenageado num vaso de barro, chamado alguidar. O sangue, recolhido numa quartinha de cerâmica (espécie de moringa), é derramado sobre o assentamento do santo, ou seja, o local onde ficam seus objetos e símbolos. As partes restantes são destinadas ao jantar oferecido aos orixás, ainda à tarde, e aos participantes, ao final da festa pública, à noite.




O padê de Exu

Este é também um ritual fechado ao público. Significa despacho de Exu. É ele quem faz a ponte entre o mundo natural e o sobrenatural. Portanto, é ele quem convoca os orixás para a festa dos humanos. Para isso, é preciso agradá-lo, oferecendo comida (farofa com dendê, feijão ou inhame) e bebida (água, cachaça ou mel). As oferendas são levadas para fora do barracão e a porta de entrada é batizada com a bebida, já que Exu é o guardião da entrada e das encruzilhadas (por isso é comum ver oferendas em esquinas nas ruas e em encruzilhadas nas estradas).